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Às avessas: a carnavalização bakhtiniana representada em O Corcunda de Notre Dame, da Disney

Ana Beatriz Maia Barissa

Luciane de Paula

            Em um século de forte repressão religiosa e política, a sociedade medieval e renascentista europeia necessitava de que sua segunda vida, como colocado por Bakhtin (1987), tivesse a possibilidade de exteriorizar os sujeitos sufocados pelas leis sociais tão fortemente impostas pelo Estado e pela Igreja. Como modo de libertação, mesmo que provisório, o carnaval veio, de forma artística e semelhante às formas teatrais, trazer ao povo o avesso . Não obstante as semelhanças, o rito carnavalesco não se limita ao palco: fronteiras espaciais são desfeitas, assim como a distinção entre atores e espectadores. As pessoas (re)nascem e renovam para uma vida festiva, enquanto dura o carnaval. E é essa festividade e liberdade que se mostra na canção Às avessas, de O corcunda de Notre Dame (no original, Topsy turvy, The hunchback of Notre Dame, 1996).

            Baseado no romance de Victor Hugo, originalmente nomeado Notre Dame de Paris, O corcunda de Notre Dame, da Disney, mostra a sociedade parisiense medieval com personagens que abrangem desde a classe marginalizada representada pelos ciganos, à camada privilegiada da Igreja, retratada pelo arcediácono Claude Frollo. No filme, a história gira em torno de Quasimodo, o sineiro corcunda da Catedral parisiense que é impedido de sair do campanário da igreja por seu mestre eclesiástico que, por ordem do padre, cuida de Quasimodo após assassinar sua mãe cigana.

            O desprezo do arquidiácono pelos ciganos é claramente mostrado na animação, inclusive devido à sua determinação ferrenha em encontrar o Pátio dos Milagres, local de refúgio da comunidade proscrita. Essa perseguição de Frollo – que representa a maior autoridade, por conseguinte, o poder do Estado, no filme – cria um embate com Clopin – que, junto com Esmeralda, representa os ciganos. Clopin possui um papel fundamental no decorrer da história. Além de ser ele o responsável para que o Pátio não seja descoberto – o que o coloca no trabalho de proteção do povo cigano –, é também aquele que conduz a Festa dos Tolos, cuja canção Às avessas é a trilha sonora que acompanha a festa e a base para nossa análise que dissertará sobre a carnavalização bakhtiniana e essa vida de festejos que permitem que o sujeito seja o artista nascido com o carnaval medieval.

            O carnaval bakhtiniano se diferencia das festas oficiais, pois é representado pela abolição da hierarquização e de uma verdade imposta pela camada dominante e cria, junto às máscaras, essa eliminação da repressão, que esconde os rostos e, em consequência, faz nascer indivíduos sem títulos ou classe social, o que permite o nivelamento da sociedade nesse único momento do ano. Bakhtin ainda complementa que

A abolição hierárquica possuía uma significação muito especial. Nas festas oficiais, com efeito, as distinções hierárquicas destacavam-se intencionalmente, cada personagem apresentava-se com as insígnias dos seus títulos, graus e funções e ocupava o lugar reservado para o seu nível. Essa festa tina por finalidade a consagração da desigualdade ao contrário do carnaval, em que todos eram iguais e onde reinava uma forma especial de contato livre e familiar entre indivíduos normalmente separados na vida cotidiana pelas barreiras intransponíveis da sua condição, sua fortuna, seu emprego, idade e situação familiar. (BAKHTIN, 1987, p.9)

              Na segunda estrofe da canção, aparece o primeiro indício da voz do povo que prevalece nesse único momento carnavalesco:

  É bom demais Vão ouvir a nossa voz Hoje não existe algoz Pois quem manda somos nós.

            Esse trecho da canção mostra o nível de repressão que sofria a sociedade medieval e renascentista. As vozes, as quais queriam ser ouvidas, só poderiam ser bradadas uma única vez ao ano por não haver, nesse momento, o Estado opressor (simbolizado pela Igreja) – instituição símbolo de poder – que os calasse. Entretanto, os quarenta dias da Quaresma vêem como forma de penitência para essas vozes que propagam o avesso. Não somente isso, mas a punição visa a relação sexual por igual, já que o carnaval também permite que o baixo extrato corpóreo se liberte. No carnaval, o sujeito é (re)criado em relação à vida, já que um outro mundo é formado, em que há a cessação provisória dos valores morais. As genitais, o ventre e o traseiro é o rebaixamento que se conecta com a terra, sinônimo do nascimento e da renovação:

Rebaixar consiste em aproximar da terra, entrar em comunhão com a terra concebida como um princípio de absorção e, ao mesmo tempo, de nascimento: quando se degrada, amortalha-se e semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e melhor. Degradar significa entrar em comunhão com a vida e da parte inferior do corpo e do ventre e dos órgãos genitais, e portanto com atos como coito, concepção, a gravidez, o parto, a absorção de alimentos e a satisfação das necessidades naturais. (BAKHTIN, 1987, p.19)

            Apesar da punição, ainda é incentivado que a população libere esse “baixo”, usualmente tão comedido, como colocado nesse trecho: “Solte os demônios que há em você.” A palavra “demônio”, cuja carga ideológica refere-se aos pecados – considerados veniais, na letra da canção – que devem ser desimpedidos na Festa dos Tolos.

            Não havia distinção de classes na liberação dos pecados. A máscara se provou um artigo bastante requisitado devido a promover a confusão e permitir que, ao esconder o rosto, o sujeito tenha a possibilidade de se revelar e se nivelar, sem que haja julgamento. Sobre as máscaras, Bakhtin diz que

A máscara traduz a alegria das alternâncias e das reencarnações, a alegre relatividade, a alegre negação da identidade e do sentido único, a negação da coincidência estúpida consigo mesmo; a máscara é a expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais, da ridicularização, dos apelidos; a máscara encarna o princípio de jogo da vida, está baseada numa peculiar inter-relação da realidade e da imagem, característica das formas mais antigas dos ritos e espetáculos. (BAKHTIN, 1987, p.35)

            Na imagem abaixo (figura 1), a máscara oculta para revelar: mais do que um adorno, ela permite às pessoas que escondam suas posições sociais e se nivelem umas com as outras, o que cria uma aproximação simbólica: Clopin (figura 1), que pertence à classe proscrita e marginalizada, evitada pela sociedade e perseguida, torna-se a figura condutora da festa dos Tolos.


Clopin usando máscara na festa dos Tolos

Figura 1: Clopin usando máscara na festa dos Tolos


            As manifestações carnavalescas tinham como objetivo anular qualquer resquício, seja ele simbólico ou não, de poder (hierarquia e repressão). Essa ideologia das coisas ao avesso, que inclui as diversas formas de “paródias, travestis, degradações, profanações, coroamentos e destronamentos bufões” (BAKHTIN, 1987, p.11) é que permite o rebaixamento das leis, normas e regras que ditam a moralização.

            Os bufões também possuem sua aparição na letra da canção, seguindo a lei do “ao avesso”: “Cada um é rei e cada rei, bufão”.  Os bufões, figuras presentes na Idade Média e no Renascimento, tinham, como função, a renovação da vida por meio do riso. Assim como a lei que rege o carnaval – a lei da liberdade – essas figuras degradavam, ultrajavam e ridicularizavam. Entretanto, é necessário esclarecer que os bufões não eram meras representações artísticas que nasciam com o carnaval e se findavam com ele, mas um estilo de vida que tinha continuação fora da vida carnavalesca por igual. Sobre os bufões, Bakhtin explana:

Os bufões e bobos são personagens características da cultura cômica da Idade Média. De certo modo, os veículos permanentes e consagrados do princípio carnavalesco na vida cotidiana (aquela que se desenrolava fora do carnaval). Os bufões e bobos… não eram atores que desempenhavam seu papel no palco…Situavam-se entre a vida e a arte (numa esfera intermediária), nem personagens excêntricos ou estúpidos nem atores cômicos. (BAKHTIN, p.7, 1987).


Figura 2: Representação do rei

Figura 2: Representação do rei



Figura 3: Bufão

Figura 3: Bufão


            Nas figuras 3 e 4, o fantasiado mostra-se como rei – afinal, todos ali podiam ser reis. Entretanto, o monarca, ao avesso – assim como a pessoa que anda de ponta cabeça – torna-se bufão. Na festa dos tolos, o soberano se converte em uma figura cômica, o que desconstrói sua imagem hierárquica e passa a ser o riso da comunidade carnavalesca.

          Os bufões participavam do carnaval com suas críticas à moral e ao modo como a sociedade vivia. Contudo, essa crítica só lhe era permitida porque “havia nele certa loucura sábia. Ele tinha permissão para observar o mundo com um olhar diferente, não pautado pelo ponto de vista normal, por juízos comuns à sociedade.” (PADILHA, 2009, p.10). Junto com a comicidade, os bufões causam o riso que, na Idade Média e renascentista, caracterizava-se pelo conjunto. Segundo Bakhtin, o riso era “patrimônio do povo”, portanto não se caracterizava como a consequência de um ato jocoso causado por terceiros e que provoca o cômico, mas universal e geral, ou seja, as pessoas não se excluem do cômico. Elas participam e se tornam objetos do riso por igual. Bakhtin ainda estende sua explanação sobre o riso e diz que ele é “ambivalente: alegre e cheio de alvoroço, mas ao mesmo tempo burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente.” (BAKHTIN, 1987, p.10)

            Na letra da canção, o riso aparece no momento de coroação do rei dos Tolos:

Vamos lá Agora diversão maior Vamos ver que cara vai ser a pior Vamos rir, não há ocasião melhor Ser o rei não é para qualquer um.

Tem que ser assustador, ficar assim Ou igual à gárgula que é ruim Para que ao trono o rei dos Tolos faça jus.

Por que? (Às avessas) Se você não tem beleza (Às avessas) Venha ser a “vossa alteza” Hoje, não tem regra e nem lei (Às avessas) Venha ser o rei

         A coroação do rei dos Tolos é o ápice da festa que Clopin conduz. Nesse momento, o extremo oposto do padrão de beleza é que se torna a peça chave para a escolha do novo monarca. Essa oposição aos padrões e conceitos que regem a moral medieval e renascentista, é o destronamento simbólico de uma monarquia absolutista – cujo poder de Estado não passa de mera ilustração e está assentado nas mãos do clero – por alguém de escolha do povo e que, de alguma forma, encontra-se na extrema marginalização da sociedade.

            O rei aclamado na festa do ano anterior (figura 4) segue a mesma regra: não ter beleza. Seu rosto possui marcas e verrugas, os dentes são tortos e também é gordo. Exatamente o tipo de monarca que o povo aclama, pois é o contrário da imagem de soberania, poderio e autoridade, a qual possui o régio absolutista.


Figura 4: Rei dos Tolos do ano anterior

Figura 4: Rei dos Tolos do ano anterior


           Todavia, esse rebaixamento à realeza só é possível – e permitido – porque a mesma tem consciência de seu poder inabalável. A Igreja, do mesmo modo, tem suas liturgias, orações e seus hinos parodiados e degradados por acreditarem e quererem que seu poder seja tomado como absoluto. E o que são festas populares para desequilibrar a autoridade imposta? A inversão dos valores racionais pelos passionais representa a possibilidade de troca sistêmica. Em confirmação e reconhecimento desse poderio, o auge da coroação de Quasimodo, em que é aclamado por ser o rei escolhido, o tolo mais feio tortuoso, dono de um corpo deficiente (que representa a feiura em contraposição à beleza “padrão”) tem como cenário a catedral de Notre Dame, cuja construção aparece de forma soberana e imponente. Tal qual a autoridade da Igreja e do Estado, a catedral, de certa forma, visualiza e se curva à soberania daquele que a sustenta, tocando seus sinos dia e noite, como demonstra o enquadramento abaixo:


Figura 5: Quasimodo aclamado como rei dos Tolos

Figura 5: Quasimodo aclamado como rei dos Tolos


Mesmo que houvesse essa “liberdade consentida”, o povo medievo realizava as suas variadas manifestações culturais, as quais Bakhtin divide em três:

  1. As formas dosz ritos e espetáculos: Não somente havia a festa dos Tolos (festa stultorum), como espetáculo, mas outros tipos de festas também, como a festa do asno, cuja comemoração acontecia em uma liturgia paródica por conta de um burro paramentado e o riso pascal (risus paschalis), o qual era montado por paróquias. Todos representando a segunda vida e o segundo mundo construídos no carnaval.

  2. Obras cômicas e verbais: essas obras tinham como objetivo parodiar e rebaixar os escritos sagrados. Eram feitos dentro da própria instituição religiosa– já que a alfabetização era restrita ao clero e a realeza – e era incentivada até mesmo como incentivo ao aprendizado da palavra sagrada.

  3. Diversas formas e gêneros do vocabulário familiar e grosseiro: o carnaval é um momento de destruição de hierarquias e títulos, o que causa o nivelamento das classes, o que permitia para a distância comunicativa diminuir. Não havia as restrições exigidas da etiqueta. Blasfêmias e grosserias eram proferidas a todo momento e, também, carregavam esse caráter ambivalente do carnaval: rebaixava e renovava, complementando o princípio de nascimento e regeneração que possuíam os ritos carnavalescos.

            As festas, os ritos, os bufões e as máscaras criam essa atmosfera artística que, no palco da praça pública, extravasa seus pecados e simboliza sua segunda vida – adornada de máscaras – regida pela libertação. As barreiras hierárquicas desmoronavam e o nivelamento social se fazia presente. Na praça pública carnavalesca é que o homem não mais se deixava comandar, mas comandava e elegia seu rei. Era na praça pública que, às avessas, ao ridicularizar o sistema, o carnaval trazia – e levava consigo – a renovação e o surgimento de um novo mundo de valores invertidos.

            No filme, é possível notar esses princípios sofrendo uma degradação. Os padrões de beleza são satirizados e invertidos para a escolha de um novo monarca. Não há simbolismo de poder do clero ou classes sociais definidas. Ao pegar a figura de Quasimodo, a Disney explora essa sensação libertária que se tem ao participar de uma festa carnavalesca. Sua rotina de sineiro – protegido no santuário – é esquecida e, mesmo com o temor de ser descoberto e punido, arrisca-se para viver o riso que a oferece o carnaval medieval. O corcunda de Notre Dame abre esse espaço no filme ao mostrar, acompanhado da canção, o simbolismo da segunda vida carnavalesca.

Referências:

BAKHTIN, M. M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.

PADILHA, P. G. O bufão e sua condição liminar das manifestações carnavalescas da Idade Média e início do Renascimento. 2009.

SOERENSEN, C. A carnavalização e o riso segundo Mikhail Bakhtin. s/d.

TROUSDALE, G., WISE, K. O corcunda de Notre Dame. Walt Disney Pictures, 1996. (90 min.). Título original: The hunchback of Notre Dame.

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