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VERBIVOCOVISUALIDADE: UMA CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM


Leonardo de Oliveira

Doutorando em Linguística e Língua Portuguesa – UNESP


Considerações iniciais

Há alguns anos, quando ainda estava na graduação em Letras, cursei uma disciplina denominada Literatura e outras linguagens, cuja proposta era, em resumo, a de analisar inter-relações da literatura com a pintura, com o cinema, com as mídias de massa, com a fotografia e com a música. Objetivando contemplar tanto a influência dessas produções na literatura quanto as contribuições da literatura para com esses campos da expressão artística, a disciplina se deu pelo estabelecimento de diálogos intersemióticos cuja análise me despertou um interesse crescente em investigar essa riqueza e multiplicidade sígnicas a partir de uma perspectiva enunciativa, interesse que reavivo agora nessa oportunidade de tecer considerações acerca da verbivocovisualidade da linguagem (Paula e Serni, 2017) com base em uma das atividades realizadas nessa disciplina, em específico.

A atividade em questão foi um exercício em que deveríamos discorrer sobre a natureza da relação entre o quadro O grito (1983), de Edvard Munch (1863-1944), e o poema O grito (Munch) (1996), de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), expressões artísticas cujo diálogo se dá segundo uma espécie de equivalência intersemiótica entre a imagem e o poema, de um modo tal que o último, de um certa forma, traduz em palavras a expressividade do primeiro. Nesse diálogo, o eu-poético do dístico de Drummond parece exprimir pelo verbal o ideal estético expressionista, interessado na manifestação de leituras subjetivas da realidade, com a mesma intensidade e agudeza da pintura de Munch. É justamente a partir dessas correspondências inter e multissígnicas subjetivas que procurarei explorar o conceito de verbivocovisualidade, buscando mostrar em um e outro enunciado remissões a que as semioses neles ostensivas nos levam a fazer a aspectos que extrapolam ao que nossos sentidos podem apreender de imediato.


A verbivocovisualidade da linguagem

O conceito de verbivocovisualidade foi cunhado por James Joyce no contexto das vanguardas modernistas européias e se refere à inter-relação do verbal com as imagens, sentimentos e sensações que um poema é capaz de provocar. O conceito foi retomado no século XX pelos artistas envolvidos com o movimento concretista, quadro no qual ele é empregado em alusão à busca de uma integração total entre a forma e o conteúdo de poemas-objetos resultantes da união inquebrantável entre semioses diversas. Posteriormente, o campo bakhtiniano se apropria do conceito a partir de diferentes enfoques e terminologias, dentre os quais nos interessa aqui o de Paula e Serni (2017), segundo o qual a verbivocovisualidade é vista como um aspecto inerente à linguagem e que, em decorrência disso, implica numa relação mútua e indissolúvel entre as dimensões sonora, visual e verbal verificáveis em todo e qualquer enunciado, independentemente das materialidades que toma como base para a sua corporificação. De acordo com as autoras, “a verbivocovisualidade diz respeito ao trabalho, de forma integrada, das dimensões sonora, visual e o(s) sentido(s) das palavras. O enunciado verbivocovisual é considerado, em sua potencialidade valorativa.” (2017, p. 179-180). Diante dessas considerações, tomo o conceito embasado nessa última visão explicitada para fazer a análise dos enunciados elencados, concepção que pressupõe a verbivocovisualidade tanto enquanto concepção de linguagem quanto como coconstituição materialidades sígnicas distintas, expressas ou implícitas.

Tendo uma vez assumido essa compreensão verbivocovisual das expressões humanas, busco nesse breve trabalho sustentá-la por meio da análise dos dois enunciados estéticos acima mencionados, com os quais pretendo demonstrar, por vias inversas (visto que, no primeiro, partirei do imagético para as demais semioses e, no segundo, do verbal para as outras materialidades a ele imbricadas), tal arranjo intersemiótico concernente à linguagem. Tratarei primeiramente do quadro O grito (1893), de pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944), tela considerada a precursora do movimento expressionista. Observe-o a seguir:


Figura 1: quadro O grito, de Edvard Munch.



Como se pode observar na figura 1, a tela nos apresenta uma figura humana aterrorizada sobre uma ponte onde as silhuetas de outras duas pessoas aparecem mais atrás e sobre um fundo onde estão estampados um lago e um céu alaranjado de entardecer. Os traços grossos, extensos e rudimentares das pinceladas, aliados às cores vibrantes empregadas, à força expressiva das linhas curvas e à expressão de horror que a figura em primeiro plano ostenta, criam uma atmosfera de angústia que, ancorada na estética expressionista, externaliza não somente as impressões singulares e desesperadas do autor-criador acerca do mundo a sua volta como ainda nos impacta quando da sua recepção, evocando-nos sentimentos fortes e que gravitam em torno dessa aura tensa e agônica que a obra inspira. Essas evocações, na qualidade de impressões provocadas pela apreciação da obra, consistem em vivências compreensivas e interpretativas que, de acordo com Volochinov, ao tocarem a interioridade dos sujeitos convertem-se em signos, já que, segundo essa perspectiva, o psiquismo interior é essencialmente sígnico (2018, p. 116). Assim, estamos diante de uma manifestação ideológica em cuja compreensão/interpretação recorremos ao discurso interior, ou seja, ao material sígnico básico com o qual se cria qualquer signo cultural, ou seja, a palavra, e, nesse sentido, o filósofo assevera que “toda manifestação ideológica, isto é, todos os outros signos não verbais são envolvidos pelo universo verbal, emergem nele e não podem ser nem isolados, nem completamente separados dele” (2018, p. 100-1). Portanto, temos um enunciado que num primeiro momento, parece-nos exclusivamente imagético, mas em cuja compreensão “a consciência sempre saberá encontrar alguma aproximação verbal como o signo cultural” (2018, p. 101), seja este último de que natureza for. Dessa forma, não podemos ignorar o fato de que, na apreensão do quadro de Munch, assim como na apreensão de qualquer outra coisa de que nos apercebamos, articulamos o não verbal, expresso na tela, ao verbal, subjacente a qualquer processo psíquico levado a cabo pela consciência. Esse é um dos postulados do Círculo no qual me ancoro aqui para corroborar, ainda que de forma bastante modesta, as formulações de Paula e Serni (2017) acerca da verbivocovisualidade dos processos enunciativos. Segundo essa perspectiva, tudo o que a contemplação do quadro suscita, independentemente da natureza do que ele evoca, adquire alma sígnica sob alguma forma material, razão pela qual vivências pessoais, memórias, movimentos, gestos, sentimentos, sensações, dizeres, imagens, sons etc. tornam-se passíveis de integrar qualquer processo enunciativo.

Esse movimento semântico em constante renovação resultante da união entre semioses se dá da mesma forma com enunciados explicitamente ancorados no verbal e, para verificarmos isso, passemos agora à observação do poema do poema O grito (Munch) (1996), de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987):

O grito (Munch)


A natureza grita, apavorante.

Doem os ouvidos, dói o quadro. (ANDRADE, 1996, p. 30)


Posterior ao quadro de Munch em mais de um século, o dístico acima apresentado ilustra bem o pensamento bakhtiniano ao nos descortinar em ato o movimento de reflexo e refração do projeto de sentido do primeiro. Diferentemente de um enunciado que poderia narrar, comentar ou descrever o quadro, o pequeno poema simplesmente traduz em palavras o que o quadro exprime, a princípio, em cores e formas. Além disso, já encontramos desde a leitura do título do poema alusões claras a uma expressão artística de natureza plástica amplamente conhecida, o que nos leva a mobilizarmos o que conhecemos a respeito da tela expressionista quando fruímos os versos de Drummond. Nesse sentido, o ato da leitura do poema acaba por incorporar uma dimensão visual ao apontar para a obra de Munch, articulação a qual se somam os aspectos sonoros característicos da poética e os recursos expressivos inerentes à forma e ao conteúdo dessas produções literárias. Tal integração semiótica faz da apreciação do dístico uma experiência sinestésica na qual a dimensão gráfica e a conformação sintático-vocabular nos remetem à musicalidade, as imagens se insinuam pelo próprio conteúdo e o apelo à nossa sensibilidade se dá pelas emoções e sensações que esse todo multissemiótico coeso, breve e agudo desencadeia. Recorrendo novamente à Volochinov, encontramos a afirmação de que

“ainda que a enunciação esteja privada de palavras, bastará o som da voz – a entonação – ou somente um gesto. Fora de uma expressão material, não existe enunciação, assim como também não existe a sensação.” (VOLOCHINOV, 2013, p. 173 – 174 – itálicos originais).

Com base nessa asserção, entendo que reações físicas, sentimentos e emoções também consistem, assim como as formas lógicas de compreensão, em meios igualmente factíveis de se apreender o mundo. Portanto, ao se tornarem cognoscíveis, todas essas vias perceptivas, sejam elas racionais, emocionais ou sensoriais, fazem das dinâmicas enunciativas, sobretudo aquelas de caráter estético, experiências semioticamente ricas. É por isso que a observação do quadro ou a leitura do poema tornam-nos expressões verbivocovisuais, pois a comunhão de todos esses aspectos passa pela semiotização deles ao chegarem a nossa consciência, convertendo-os em signos assim sujeitos à atribuição de sentidos tão diversos quantos os lugares ocupados pelos sujeitos que interagem com esses enunciados.


Considerações finais

Ao contemplarmos o quadro apresentado (figura 1) ou ao lermos o poema citado, fazemos associações entre os múltiplos aspectos constitutivos de cada um tanto entre si quanto com tudo o que podem incutir conforme a singularidade dos lugares de compreensão de cada sujeito que a eles apreciam. Se na contemplação de cada um desses enunciados já agregamos um sem-fim componentes que transcendem ao próprio material semiótico que os constitui, no diálogo entre eles promovemos encontros intersígnicos que potencializam tais possibilidades de associação semântica e conferem a eles riqueza semiótica ainda maior. Assim, se à simples contemplação da tela de Munch ou do poema de Drummond, isoladamente, já se incorporam vivências sensório-emotivas e saberes diversos, no encontro entre eles cada um se renova enunciativamente ao ser retomado pelo outro de um modo tal que formam correntes enunciativas em cujo movimento dialético acumulam e articulam essas vivências e saberes. Com isto, todas essas experiências conscientes reunidas, sendo de naturezas sígnicas distintas entre si e inevitavelmente incorporadas aos processos enunciativos, fazem com que os diferentes materiais semióticos constitutivos desses enunciados se somem, se permeiem e se alarguem, fazendo da comunicação discursiva um acontecimento fundamentalmente verbivocovisual.

Como busquei demonstrar, apesar de a pintura e o poema serem baseados em materialidades sígnicas distintas, um e outro são igualmente permeados por experiências socioenunciativas e por subjetividades diversas que conferem à produção, circulação e recepção de ambos insinuações a variadas formas materiais com as quais se pode assimilar o mundo.


Referências

ANDRADE, Carlos Drummond. Arte em Exposição. Rio de Janeiro: Editora Record, 1996.

BRASIL. Ementa e conteúdo programático. Emitida em 15 de julho de 2013. Disponível em:<https://sig.ufla.br/modulos/publico/matrizes_curriculares/index.php>. Acesso em: 10 jun. 2021.

PAULA, L.; SERNI, N. M. A vida na arte: a verbivocovisualidade do gênero filme musical. Raído, Dourados, v. 11, n. 25, p. 179-180, jan./jun. 2017.

QUADRO O Grito, de Edvard Munch. Cultura genial, [s.d.]. Disponível em: https://www.culturagenial.com/quadro-o-grito-de-edvard-munch/. Acesso em: 10 jun. 2021.

VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem – problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2018.

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