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UM LEITOR PARA O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE MIA COUTO: ESBOÇO INACABADO DE UMA ANÁLISE INCONCLUSA

José Radamés Benevides de Melo[1]

Introdução

Pensando o texto literário e sua leitura como fenômenos dialógicos é que vislumbramos a possibilidade de ter como objeto de estudo O último voo do flamingo, de Mia Couto, em diálogo com os (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais que são, alusivamente, retomados na constituição social de sentidos.

É a partir desse diálogo, que surge nosso questionamento de pesquisa – como a alusão, enquanto estratégia de leitura, constitui o leitor-modelo do autor-modelo, pressuposto por nós, de O último voo do flamingo? Partindo dessa questão, pretendemos investigar a alusão como estratégia de leitura na constituição do leitor-modelo do autor-modelo, pressuposto por nós, de O último voo do flamingo. Para isso, entendemos que é preciso: 1) articular os conceitos de dialogismo, heterogeneidades constitutiva e enunciativa, alusão, autor e leitor-modelo e 2) articular de maneira dialógica a obra literária investigada com as teorias que nos fundamentam.

Desse modo, concebemos o diálogo entre as teorias do dialogismo (BAKHTIN, 1980), da heterogeneidade (AUTHIER-REVUZ, 1990) e da alusão (TORGA, 2001) com as teorias do autor e leitor-modelo (ECO, 1979, 1994) a fim de nos auxiliar no processo de leitura aqui proposto, já que a alusão, enquanto elemento heterogêneo, dialógico e discursivo que é, nos coloca em diálogo com os leitores de Mia Couto e com tudo o que é retomado, reconstruído, re-significado, num movimento de ir e vir de sentidos, promovido pela memória.

Partindo dos conceitos de dialogismo e heterogeneidade para melhor compreensão e apresentação de nossa concepção de alusão enquanto estratégia de leitura, estabelecemos o diálogo dessa obra com os constructos teóricos aqui adotados, com o intuito de elaborar nosso leitor-modelo do autor-modelo pressuposto por nós de O último voo do flamingo. Em seguida, apresentamos o processo da nossa leitura dialógica fundada na alusão como estratégia de leitura…

  1. Dialogismo, heterogeneidade e alusão…

Entendemos a narrativa romanesca a partir de uma perspectiva dialógica, já que, no romance, encontramos marcas de textos outros. Na perspectiva bakhtiniana, não se entende o diálogo somente como aquele que se dá face a face, mas também como a interação histórica e social de textos, discursos e/ou falas sociais que interagem de alguma forma com outros textos, discursos, enunciados, sujeitos. Brait (2005, p. 95) afirma que

 […] o dialogismo diz respeito ao permanente diálogo, nem sempre simétrico e harmonioso, existente entre os diferentes discursos que configuram uma comunidade, uma cultura, uma sociedade. É nesse sentido que podemos interpretar o dialogismo como o elemento que instaura a constitutiva natureza interdiscursiva da linguagem.

O último voo do flamingo, como todo texto, é dialógico e apresenta referências, citações, intertextos, enfim, as marcas de outros enunciados que fazem parte de sua construção. O texto como enunciado concreto é, assim, ao mesmo tempo dialógico e heterogêneo, visto que dialoga com outros textos e falas sociais. É essa presença do outro, uma presença que pode ser ou não-marcada, que torna esse texto constitutivamente heterogêneo e dialógico. São as citações, referências, itálicos, aspas e também os elementos implícitos na estrutura da composição textual – aqueles que não são vistos nem percebidos através de elementos concretos, mas principalmente pelo trabalho da memória –, que o tornam heterogêneo. Essa noção de heterogeneidade está vinculada aos trabalhos de Authier-Revuz que, segundo Cardoso (2005, p. 88), “Para elaborar o conceito de heterogeneidade constitutiva, […] articula o conceito de dialogismo de Bakhtin com o seu de heterogeneidade constitutiva da linguagem.” Podemos dizer, dessa forma, que as teorias do dialogismo e da heterogeneidade da linguagem compõem um diálogo sócio-historicamente situado e constituído por seus autores e destinatários, já que, como afirma Bakhtin (2011), todo enunciado tem autor e está endereçado a alguém. Diante disso, a pesquisadora assinala que o dialogismo bakhtiniano “constitui, através de uma reflexão multiforme, semiótica e literária, uma teoria da dialogização interna do discurso” e arremata: “As palavras são, sempre e inevitavelmente, “as palavras dos outros”” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 26-27). Ainda segundo ela, “Sempre sob as palavras, “outras palavras” são ditas: é a estrutura material da língua que permite que, na linearidade de uma cadeia, se faça escutar a polifonia não intencional de todo discurso” (AUTHIER-REVUZ, 1990, p. 28).

Os elementos caracterizadores da heterogeneidade e do dialogismo têm sido entendidos como alusões, na perspectiva dialógico-dialética de Torga (2001). Para ela, “a alusão é a estratégia mediadora dos movimentos do intradiscurso, do interdiscurso, da intertextualidade” (TORGA, 2001, p. 7), e nós acrescentaríamos: da dialogia constitutiva de todo enunciado.

Desse modo, compreendemos, neste texto, a produção do sentido para o enunciado na perspectiva do dialogismo, que, para Torga (2001), envolve, em alguma medida, a heterogeneidade e a alusão. Se a língua, os textos e as falas sociais são dialógicos, são, necessariamente, heterogêneos e alusivos. A alusão é uma estratégia de leitura mediada pela memória e que, por isso, mobiliza textos, falas sociais, esquecidos, sentidos através do diálogo com outros discursos, outros textos etc., no processo de construção de sentido. Podemos afirmar, assim, que as teorias do dialogismo e da heterogeneidade se encontram na teoria da alusão como compreendida por Torga (2001).

Em Melo e Torga (2001, p. 140), afirmamos que, “Para realizar o movimento de sentido, a alusão exige da memória que resgate fragmentos, inteiros, partes, todos, esquecidos que, de alguma forma, estão relacionados com o texto a ser atualizado.” Assim,

As alusões vão formando a figura do todo – a partir dos índices – pequenas citações, enquanto partes desse todo. Formam, elas, os nexos entre as pequenas partes e o todo que engloba estas partes com a ação dos significados da mediação que fazem o ir e vir da parte para o todo e vice-versa e indiciam as peças que o leitor empírico, vestido de leitor-modelo, vai articulando com o todo em reconstituição. (TORGA, 2001, p. 10)

Por isso, a alusão se constitui num movimento que vai da(s) parte(s) para o todo, ou do todo para a(s) parte(s), ela “é esse movimento dialógico centro/margem/centro – todo/parte/todo – fenômeno/essência/fenômeno”, “O centro [que] alude à passagem que as margens indiciam nas entrelinhas, nas lacunas.” (TORGA, 2001, p. 13).

É nesses movimentos alusivos que entrevemos o funcionamento da memória, medida pela alusão, responsável pelo entrelaçamento de enunciados, vozes sociais, interdiscursos, silêncios (ORLANDI, 2007) e esquecimentos na construção e constituição sócio-histórica de sentidos. Enquanto categoria de natureza discursiva, a memória é histórica e social, está imbricada, por isso, aos processos discursivo-ideológicos. Defendemos, assim, que a alusão é, além de uma categoria, uma estratégia dialógica e, inevitavelmente, heterogênea (aponta sempre para um outro, para um diferente, um exterior, num processo recíproco de constituição): “nenhum jogo alusivo se mantém se não houver a diferença entre todo e parte, logo a relação de parte e de todo é marcada constitutivamente pela heterogeneidade” (TORGA, 2001, p. 45).

Nesse sentido, a alusão funciona na leitura e na escrita, nas dimensões do intra e do interdiscurso. Torga (2001) articula alusão e estratégia de leitura e de escrita. Como Eco (1979; 1994) concebe leitor e autor modelo enquanto estratégias de textualização, tanto o primeiro quanto o segundo podem ser constituídos, primordialmente, pela alusão. Eco (1979, p. 65) assim define autor e leitor modelos:

 Se Autor e Leitor-Modelo são duas estratégias textuais, encontramo-nos, então, face a uma situação dúplice. Por um lado, como dissemos há pouco, o autor empírico como sujeito da enunciação textual formula uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da sua própria estratégia, caracteriza-se a si próprio enquanto sujeito do enunciado, em termos igualmente “estratégicos”, como modo de operação textual. Mas por outro lado, também o leitor empírico como sujeito concreto dos actos de cooperação, deve esboçar uma hipótese de Autor, deduzindo-a, justamente, dos dados de estratégia textual. A hipótese formulada pelo leitor empírico acerca do seu Autor-Modelo parece mais segura do que aquela que o autor empírico formula acerca do seu Leitor-Modelo. De facto, o segundo deve postular alguma coisa que ainda não existe efectivamente, realizá-la como séries de operações textuais; o primeiro, pelo contrário, deduz uma imagem-tipo a partir de algo que se produziu anteriormente como acto de enunciação e que está presente, textualmente, como enunciado.”

 Eco deixa claro, nessa passagem, que a formulação da hipótese de um autor modelo é mais segura que a construção da hipótese de um leitor modelo pelo autor empírico. Isso se deve ao fato de o leitor empírico se valer do texto, que já está posto e a partir do qual, parte para, na interação com o texto, levantar a hipótese do autor modelo – e também a do leitor modelo. Tanto uma quanto outra emergem da relação dialógica estabelecida entre autor, texto e leitor. Dessa interação, fazem parte os intertextos, os interdiscursos (referências, citações, pastiches, alusões, memória etc.), já que é nesse jogo que o leitor faz o texto, “máquina preguiçosa”, funcionar (ECO, 1994, p. 9). Assim, compreendendo o leitor modelo como uma estratégia de leitura, podemos sustentar que essa estratégia, fundada nas categorias acima arroladas, é heterogênea e, sobretudo, dialógica.

Tendo isso em vista, procuramos, no próximo tópico, angariar elementos de O último voo do flamingo que auxiliem na construção de um leitor modelo por meio da alusão para essa narrativa de Mia Couto…

  1. Um leitor em O último voo do flamingo

O leitor modelo de O último voo do flamingo constituído na alusão funciona como uma estratégia de leitura dialógica, heterogênea e cooperativa na atualização, resgate e constituição de sentidos a partir do texto de Mia Couto. Nesse processo de leitura, nosso leitor modelo percebe, a partir da heterogeneidade discursivo-enunciativa de O último voo do flamingo, que há diferentes vozes sendo pronunciadas no romance em questão. É esse diálogo entre essas diversas vozes, entre nosso leitor modelo e essas vozes e entre estas e os (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais que possibilita o acontecimento de sentidos.

A personagem tradudor de Tizangara indicia o resgate da simbologia do “tradutor” como aquele que medeia (media) a comunicação entre sujeitos pertencentes a culturas distintas e falantes de línguas diferentes. Essa função mediadora aparece, nas mitologias grega e romana, metaforizada na imagem de Hermes, cuja função é mediar a relação entre homens e deuses. Isso nos lembra da relação entre o europeu italiano Massimo Risi e o povo de Tizangara e toda a sua diversidade linguístico-cultural marcada pelo misticismo, religiosidade, senso do sagrado, mistérios, segredos, silêncios, mas também pelo contato com culturas outras, que pode ser classificado como um dos efeitos do processo de colonização de Tizangara, metonimicamente, de Moçambique. O povo africano, sagrado, orientado diariamente por uma cultura que funde o sagrado, o mitológico e o profano-humano, recebe a visita inusitada de um estrangeiro que pouco fala em português local e que, por isso, precisa da mediação do tradutor-“Hermes” para a comunicação acontecer. Limitado pelo pensamento racional do ocidente, pelo logocentrismo e pela lógica maniqueísta que orienta a vida dos ocidentais, Massimo Risi é mesmo um estranho (estrangeiro) no meio de uma gente cujos valores, costumes e crenças afrontam a linearidade do pensamento e da vida ocidentais. Entre esse povo-deus – porque sagrado, porque mítico – e Massimo Risi, há um tradutor-“Hermes”, aquele que mediará a relação entre o limitado estrangeiro e o povo-deus (sagrado, ilimitado).

Todo tradutor é também um leitor, tudo o que lemos e conhecemos da vida em Moçambique, de suas lendas, de seus mitos é por intermédio desse tradutor-leitor que é também narrador. Ao limitado estrangeiro é apresentada uma Tizangara lida-traduzida-narrada, se pensarmos no leitor como aquele que invade, adentra, chega a espaços estranhos – no dizer do próprio Umberto Eco (1994), como aquele que passeia por bosques ficcionais –, tanto Massimo Risi quanto nós conhecemos-lemos a narrativa de Tizangara-Moçambique pelos olhos, pela voz e pela leitura-tradução-narração do tradutor de Tizangara cuja função é mediar a relação entre esse povo lendário-mítico-sagrado, enfim esse povo-deus, e os limitados leitores-estrangeiros que, perdidos diante de uma lógica distinta da ocidental, necessitam desse apoio para “passear por bosques ficcionais tão desconhecidos, exóticos, estranhos, até mesmo absurdos” aos olhos do leitor-estrangeiro e/ou do estrangeiro-leitor do ocidente.

É também esse leitor-tradutor-narrador, complexo em sua constituição porque dialógico, heterogêneo e alusivo, o responsável pelo diálogo marcadamente heterogêneo entre as diferentes vozes que se mostram através de sua narração.

No fio dessa narração, diversas vozes se colocam nas relações dialógicas estabelecidas ou em-si-estabelecendo tanto pelo leitor-tradutor-narrador de Tizangara quanto pelo nosso leitor-modelo que, com ele dialogando, retoma, através das partes, os todos ou quase todos dos diversos (inter)discursos, (inter)textos, falas sociais sugeridos discursiva e enunciativamente pelas lendas, mitos, histórias narradas pelo tradutor de Tizangara. É esse jogo entre parte e todo e parte que possibilita o trânsito dos sentidos que estão sempre num se constituindo, nunca estanques, mas sempre relacionais. Assim, ao narrar uma lenda de Tizangara, esse leitor-tradutor-narrador nos expõe a uma gama de pistas textual-discursivas que, alusivamente, mobilizam sentidos. Quando o olhar de nosso leitor modelo se volta para o(s) todo(s) de cujas partes temos conhecimento, a partir desse(s) todo(s), voltamos o olhar desse leitor para as partes que já não são as mesmas, uma vez que seu sentido de parte aparece agora influenciado, tomado pelos sentidos do(s) todo(s).

É justamente essa relação alusiva entre parte (presente na narração) e todo (por ela retomado) que se dá o diálogo entre os diferentes discursos, falas sociais, textos, leitores e leituras. Fundar nosso leitor modelo na alusão é pôr em diálogo todos esses elementos já citados e, podemos dizer, acrescentar-lhes as teorias que nos fundamentam. Todos eles estão num constante diálogo responsável pela constituição de sentidos, já que é no diálogo de linguagens e vozes sociais que os sentidos são constituídos (BAKHTIN, 2010a). É a alusão responsável por esse diálogo entre teorias, texto literário, leitores e leituras, diálogo marcado e constituído a partir do outro e, por isso mesmo, heterogêneo.

A alusão enquanto estratégia dialógica, heterogênea e cooperativa de leitura nos faz perceber o caráter simbólico da prostituta Ana Deus Queira e da personagem Temporina. A primeira traz um texto marcado pelos costumes, hábitos e crenças do povo de Tizangara. Temporina é, metaforicamente, e toda metáfora é também alusiva (TORGA, 2001), um elo entre passado, presente e futuro; nela, essas três instâncias do tempo se (i)materializam. Ela é, ao mesmo tempo, o antes, o durante e o depois, o que a torna incompreensível aos olhos da lógica ocidental de Massimo Risi. Simultaneamente, isso confere a Temporina um aspecto sagrado, místico, mítico, essas tríades encontram-se nela concentradas, como, aliás, é típico das metáforas (a concentração), como bem mostra Torga (2001). Em sua figura alusiva, veem-se marcas, ou partes, essas partes dialogam com um todo ou todo(s), e é nesse diálogo parte/todo/parte que acontece a ida e vinda de sentidos, mas não só entre Temporina e a Mitologia, entre temporina e a literatura, mas entre essas e as teorias que nos fundamentam, é justamente essa compreensão de que a linguagem é essencialmente dialógica (BAKHTIN, 2011; 2010a; 2010b), heterogênea (AUTHIER-REVUZ, 1990) e alusiva (TORGA, 2001) que nos possibilita mobilizar uma diversidade de (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais, ideologias, saberes para promover a construção dialógica e dialética de sentidos.

Quando falamos em discursos, falas sociais, textos, falamos também no lugar discursivo que aqueles que os professam ocupam. Se a linguagem é dialógica, heterogênea e alusiva, uma das condições para que ela seja assim concebida são os aspectos contextuais de sua produção. Afinal, quando falamos em parte, consideramos o contexto em que essa parte aparece pronunciada, isso nos permite dizer que o mesmo elemento linguístico-literário pode adquirir significados distintos a depender das condições de sua enunciação.

Por isso, precisamos, pelo menos como tentativa, delimitar o lugar discursivo de Temporina e do padre Muhando. Por considerarmos os comentários feitos a respeito do leitor-tradutor-narrador de Tizangara suficientes para a caracterização de seu lugar enunciativo, daqui por diante, dedicar-nos-emos a outros elementos da narrativa.

Quem é Temporina? De onde ela fala? Isto é, de que lugar enunciativo Temporina pronuncia seus (inter)textos, (inter)discursos, falas sociais? Já dissemos que Temporina faz alusão a saberes como o mitológico, o sagrado, o lendário, às crenças populares. Ela é identificada como um elemento místico dentro da Vila de Tizangara, afinal ninguém ousava olhar-se na face (e isso lembra a figura da medusa), o que por ela é dito assume sentidos místicos porque por ela é dito, diferentemente se fosse dito por Ana Deus Queira ou pelo padre Muhando. Suas palavras são carregadas de um peso e de sentidos pelos quais ela (a partir de seu lugar enunciativo) é responsável. E talvez seja por isso que suas alusões sejam também tão diversas e cheias de sentidos que parecem suplantar os limites do simbólico, assim como a própria Temporina.

Um processo semelhante acontece com o padre Muhando. Com (inter)discursos, (inter)textos, falas sociais marcadamente místicos e ligados ao sobrenatural (para a lógica ocidental), talvez uma diferença seja seu lugar de cardeal oficial da Igreja Católica, o que parece ser suplantado pela força da cultura moçambicana, a Igreja de Moçambique é a mesma aos olhos do estrangeiro-leitor-ouvinte. O (inter)texto bíblico aparece fundido aos (inter)textos, discursos míticos de Tizangara. A apresentação do mito da criação da humanidade aparece associada à luz e muito mais à água do que a terra. A mulher é criada a partir de uma lágrima de Deus. Se levarmos em conta o valor simbólico da lágrima, sua associação à narrativa bíblica que orienta grande parte do ocidente, assim como sua ligação com o sofrimento, que orienta a compreensão desse estrangeiro-leitor-ouvinte, percebemos uma aproximação nos textos a respeito do lugar da mulher no mito da criação, com sua imagem vinculada ao sofrimento e sua criação posterior à do homem.

Em O último voo do flamingo há várias narrativas, que não são apenas narrativas. Elas adquirem um outro valor simbólico, como podemos ver sugerido na epígrafe do livro, um agradecimento a Joana Tembe e a João Joãoquinho por contarem histórias como quem reza. As narrativas adquirem, dessa forma, mais um valor simbólico, além do que lhe é peculiar, aparece um outro, o religioso, o sagrado. Ora, é justamente essa presença do outro (BAKHTIN, 2011; 2010a; 2010b; AUTHIER-REVUZ, 1990) que confere à linguagem seu estatuto heterogêneo, dialógico e alusivo. E por isso, estrategicamente nos dirigimos ao todo, qual seja, o discurso religioso, é nessa ida ao todo e no retorno à parte que se constituem os sentidos e assim vislumbramos que talvez todo o povo de Tizangara assim o seja, pleno de sentidos que desafiem a lógica óbvia do estrangeiro-leitor-ouvinte do ocidente.

Fui eu que transcrevi, em português visível (usa a língua do colonizador para falar ao mundo de sua própria cultura), as falas que daqui se seguem. Hoje são vozes que não escuto senão no sangue (uma relação visceral com a cultura), como se a sua lembrança me surgisse não da memória, mas do fundo do corpo. É o preço de ter presenciamos tais sucedências. Na altura dos acontecimentos, eu era tradutor ao serviço da administração de Tizangara. Assisti a tudo o que aqui se divulga, ouvi confissões, li depoimentos. Coloquei tudo no papel por mando de minha consciência. (…) Agora, vos conto tudo por ordem de minha única vontade. É que preciso livrar-me destas lembranças como o assassino se livra do corpo da vítima. (COUTO, 2005, p. 9)

O tradutor assume aqui a sua função, apresentando-se como o personagem que narra (transcreve) o que viu e que ficou inscrito em sua memória, essas lembranças pesam-lhe na alma, são-lhe um estorvo, um obstáculo do qual ele quer se livrar. É nessa primeira escrita que se nos apresenta a voz do narrador de O último voo do flamingo. No fragmento, observa-se ainda a referência às diversas vozes e falas das quais as lembranças constituem o sujeito tradutor de Tizangara que as possui “cravadas no corpo”, de onde elas surgem. Assim, percebemos esse personagem/sujeito fundado na heterogeneidade e, portanto, no dialogismo. A presença do outro na sua constituição é que nos possibilita concebê-lo enquanto sujeito heterogêneo, transpassado pelas diversas vozes e falas que, inscritas não na sua memória mas no seu corpo, fazem-no num fazendo, num constante constituindo-se. O que, aliás, está de acordo com o que Authier-Revuz (1990) defende quando apresenta a discussão sobre a heterogeneidade constitutiva da linguagem. Vale lembrar que, naquela ocasião, a autora francesa se apropria de alguns constructos da psicanálise lacaniana, principalmente os referentes à constituição do sujeito e, numa articulação entre dialogismo, linguística e psicanálise, nos apresenta a discussão sobre a heterogeneidade na linguagem.

Parece-nos que o personagem-tradutor-narrador, de O último voo do flamingo se apresenta como esse sujeito constituído a partir do(s) outro(s), marcadamente heterogêneo, cuja memória, também integrante desse processo, ajuda-nos, através de suas alusões, na leitura ora proposta para esse texto de Mia Couto.

Os movimentos do Couto-autor inscrevem na narrativa um tradutor-narrador-autor que, num movimento de ida e vinda, forja um tradutor-narrador-leitor – já que essa personagem escreve enquanto autor, quando assume o lugar do tradutor-narrador, mas também o de leitor, quando, como autor, lê sua própria tradução ao assumir o lugar de Massimo Risi. Teríamos, então, um jogo entre esse autor modelo que desempenha as funções de autor e de leitor. E, por isso, poderíamos dizer que esse autor modelo se constitui na junção dessas duas funções, desses dois papéis, desses dois lugares. Ele se constitui, enquanto todo, nas partes. É preciso, dessa forma, haver o diálogo entre essas partes e esse todo e é justamente nesse jogo entre partes/todo/partes que passeia nosso leitor modelo fundado na alusão. O tradutor é mesmo a condensação, num movimento metafórico do ‘um’ e do ‘outro’. É ele quem escreve, mas também é ele quem lê. Afinal, o ato de traduzir condensa, pelo menos, as duas operações. O nosso autor modelo também lê, por trás de Massimo Risi, sua própria narrativa. Escreve em língua portuguesa, a língua do colonizador, do outro, um conhecimento diverso ao próprio leitor, mas que só ele, enquanto tradutor, consegue ou pode autorizar o leitor a ler, engendrando, constituindo assim um leitor; sem o qual, não seria autor. Esse leitor é Massimo Risi, parte de um autor (o narrador-tradutor)…

*          *          *

Se dissemos anteriormente que, enquanto leitores, também somos estrangeiros (Massimo Risi é a metáfora desse leitor-estrangeiro que lê-ouve a narrativa do tradutor). Esse mesmo Mássimo Risi é a inscrição/invasão de um leitor (estrangeiro) no texto. É o movimento típico da metáfora e de suas alusões: a personagem Massimo Risi concentra em si a figura do leitor-tradutor (parte de nosso autor modelo) e a figura de um leitor inscrito no texto (parte de um possível/previsto leitor modelo). Assim, nosso leitor modelo, fundado na alusão, é revelador, pois nos diz, a partir do diálogo parte/todo/parte que, se a identidade se constrói no outro, o narrador-tradutor se constitui no seu outro, a saber, Massimo Risi, um é parte do outro, e vice-versa, na constituição de um todo, que não existe sem suas partes, sem seu outro.

É esse autor inscrito na obra que deixa pistas para que nós, a partir delas, constituamos nosso leitor modelo. Se entendemos pistas como alusões, nosso leitor modelo, isto é, nossa estratégia de leitura, é alusiva…

Referências

AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lingüísticos: o discurso e suas análises, Campinas (SP), v. 19, p. 25-42, jul.-dez. 1990. Disponível em: <http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/cel/article/view/3012/4095>. Acesso em: 10 jan 2009.

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Tradução de Aurora Bernardini et al. 6 ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2010a.

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010b.

BRAIT, B. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: BRAIT, B. (org). Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. 2 ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2005.

CARDOSO, S. H. B. Discurso e ensino. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica/FALE-UFMG, 2005.

COUTO, M. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

ECO, U. O Leitor Modelo. In. Lector in Fabula: leitura do texto literário. Lisboa: Editorial Presença, 1979. p. 53-70.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

MELO, J. R. B.; TORGA, V. L. M. A alusão como estratégia textual da leitura de O mistério da Casa Verde em diálogo com O alienista. Diálogos Pertinentes – Revista Científica de Letras, Franca (SP), v. 7, n. 1, p. 131-152, jan.-jun. 2011. Disponível em: <http://publicacoes.unifran.br/index.php/dialogospertinentes/article/view/523/424>. Acesso em: 22 mar 2012.

ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

TORGA, V. L. M. Movimento de sentido da alusão: uma estratégia textual da leitura de ler, escrever e fazer conta de cabeça, de Bartolomeu Campos Queirós. 2001. 98 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Letras. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.

[1] Professor de Língua Portuguesa do IF Baiano, Campus Senhor do Bonfim, e aluno do mestrado em Linguística e Língua Portuguesa na Unesp, campus de Araraquara, onde desenvolve pesquisa sob a orientação da professora Luciane de Paula.

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