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Tribos sociais: uma reflexão dos jovens rappers no espaço urbano

Nátalie Ferreira Carvalho Silva

Introdução

 Neste artigo, apresentamos, em parte, a continuidade de um raciocínio formulado em minha pesquisa de iniciação científica, numa oportunidade de reflexão que contribuem com as particularidades que envolvem este campo de estudo. Para tal, trazemos à nossa discussão um apanhado referente às tribos urbanas, em especial, a dos jovens participantes do movimento hip hop que, de acordo com Paula, visa “dar voz aos sujeitos excluídos tanto dos Estados Unidos quanto do Brasil composto por canção (rap e funk), dança (break), pintura (grafite) e poesia (as letras das canções, assim chamadas pelos sujeitos do movimento)”. (2007, p. 19)

Diversos autores se debruçaram sobre o tema aqui proposto, no qual expuseram importantes esclarecimentos sobre as condutas das tribos no espaço urbano tal como suas manifestações, a história de seu nascimento, características estéticas e psicológicas, bem como, o discurso e outras peculiaridades que compõem estes grupos. A partir dessas questões já levantadas, delimitamos nosso trabalho em estudar o jovem como sujeito social em exemplos daqueles que se dedicam à construção dos raps brasileiros. Apesar de trazermos algumas características do gênero cancioneiro escolhido, esta discussão não se direciona a sua constituição em si mesmo, mas a um olhar sobre os que participam e produzem tais composições em objetivo de “compreendê-los como sujeitos sociais que, como tais, constroem um determinado modo de ser jovem” (DAYRELL, 2003, p. 40).

O jovem e sua contribuição social

 Em primeira instância, a expressão “tribo urbana” foi cunhada pelo sociólogo francês Michel Maffesoli, em alguns de seus artigos. Posteriormente, sua obra “O Tempo das Tribos: declínio do individualismo nas sociedades de massa” (1987) popularizou o termo que, segundo o autor, assinala determinadas maneiras de organização dos jovens no contexto pós-moderno. Encontradas nos grandes centros urbanos, as tribos se agrupam por anseio de se diferenciarem da sociedade em questão, mas também pela identificação com pessoas que compartilham os mesmos valores (relativos ao comportamento político), elementos estéticos (maneiras de se vestir e performance), gosto musical e lazer (áreas de sua circulação e compreensão do espaço urbano como fonte de cultura). Nessa lógica, uma tribo pode ser identificada, basicamente, por três aspectos coexistentes:a imagem estética, as práticas de lazer e o estilo musical (ANTONI; RODRÍGUEZ; SOUSA. 2014).

Em posição que ultrapassa as linhas do entretenimento, da fruição, do prazer e da distração, as tribos criam uma ideologia alternativa à ordem social, bem como organizam metas e propostas acerca dessa transformação. No Brasil, por exemplo, a tribo constituinte do movimento hip hop não se desvincula dessas características sediciosas tendo, no rap, um veículo de comunicação que verbaliza a resistência e os direitos dos afros-descendentes. Calcadas na ordem social vigente, as letras das canções descrevem os grupos em si, os quais afirmam sua identidade, características e ideais assumidos – muitas vezes geradas por uma insatisfação social. Tal auto-imagem possibilita conhecimento mais aprofundado acerca da entoação autoral do sujeito compositor, do intérprete, das personagens da canção e institui o ethos cantado/narrado, expresso no contexto de uma sociedade cada vez mais globalizada. Um exemplo aparece na canção “Negro Drama”(2002), do grupo Racionais Mc’s: “Desde o início / Por ouro e prata / Olha quem morre / Então veja você quem mata / Recebe o mérito, a farda que pratica o mal / Me ver pobre, preso ou morto / Já é cultural.”. Aqui, o enunciador-locutor fala sobre si e seu grupo (marcado pela pobreza, igualada à bandidagem – e é exatamente sobre esse núcleo temático que a crítica se foca), institui a voz de determinados sujeitos e suas realidades socioculturais vividas (seu ethos), em embate com uma outra voz, com a qual não se identifica (os verdadeiros bandidos, aqueles que roubam e matam por ganância e poder – econômico: “por ouro e prata”; e bélico: “a farda” da polícia militar).

Em caráter narrativo e tom de revolta, a letra surge como instrumento de denuncia e desabafo ao preconceito racial – muitas vezes, justificado pelo processo histórico do país, no qual constrói um julgamento sobre alguns valores então instalados no período da colonização:

 “Desde o início” mata-se por “ouro e prata”, o que evidencia a morte alegada pelo capital onde havia, segundo Zeni, literalmente, sede de riqueza quando as colônias “descobriram o ouro nas Minas Gerais, no final do século XVII, mas também antes, durante o ciclo da cana-de-açúcar, e depois, nas lavouras de café, como atualmente na periferia das grandes cidades, segundo dizem os Racionais”.

Ao utilizar um discurso direto e imperativo (“veja você quem mata”), o narrador chama a camada social alta brasileira para algumas questões políticas e ideológicas do país. Na segunda parte da canção, o embate social torna-se ainda mais latente e o enunciador-locutor chega, até mesmo, a se vangloriar pelo fato dos jovens ditos “playboys” gostarem do rap:

 Inacreditável, mas seu filho me imita / No meio de vocês / Ele é o mais esperto / Ginga e fala gíria / Gíria não, dialeto / Esse não é mais seu, / Hó, / Subiu / Entrei pelo seu rádio / Tomei / Cê nem viu, / Nós é isso ou aquilo / O que? / Cê não dizia? Seu filho quer ser preto / Rááá…/ Que ironia.

 Outra prática das tribos é reproduzir, de forma estética, uma consciência do lugar ocupado por eles. Em exemplo é a canção “Negro Drama, que expõe as conquistas dos sujeitos cantados pelos Racionais Mc’s: antes, “sangue”; agora, “a própria navalha” – em alusão novamente a aspectos históricos brasileiros. Sob esse prisma, a letra versa com dois tons, pois, ao mesmo tempo em que se apresenta forte e agressiva, mostra um lado lírico no/do rap, típico do processo estilístico dos autores-criadores, que ganham a “consciência da passagem do tempo e reflexão sobre a posição social do grupo que, se não é absolutamente inédita nas composições dos Racionais, ainda não havia aparecido de forma tão evidente e tocante”. (ZENI, 2004).

A referência à polícia é frequente na tribo hip hop, principalmente no discurso materializado no rap e, no caso da canção por nós aqui analisada, essa crítica aparece transposta pela palavra “farda”, anteposta a “pratica o mal”, em alusão ao abuso de puder da “PM” na periferia. Esse recorte do meio participa como componente da construção do ethos das tribos. Esses elementos marcam a denúncia e a crítica, pois, por meio deles, outras imagens de grupos diversos, compostos por alteridades negadas se tornam presentes na canção. Também é comum os participantes dos grupos se auto afirmarem pela ocupação de um determinado espaço – com o auxilio de marcas características, tal como: pichação, dança, bailes, vestimentas, entre outras. (MADRID, 2001).

Buscadas, em sua maioria, pelos “marcadores imaginários” (CASTRO, 1998), as tribos possuem um cuidado com a autoimagem, ou seja, o jeito que se portam traduz o empenho e a relevância aos outros participantes. Essa imagem inclui roupas, performance, cabelo, tatuagem, acessórios, língua, entre outras particularidades que compõem a imagem dos sujeitos.

Com os rappers, por exemplo, a forma como entoam a letra é parte essencial da estética de suas canções, visto que utilizam a fonética e o léxico (expressões típicas das periferias) na construção do texto, bem como uma sintaxe própria da oralidade de um registro específico, contra a gramática normativa – exemplos da letra “Negro Drama”: “Cê”, “Tá pensando”, “Pra”, “Mó cota”, “Mano”, “Mina”, “Num guenta” “Seus carro é bonito” “Os carro loco”, “Eu não sei fazê”. A maneira como os rappers se apresentam também marca a sua imagem e seu ethos no jeito de se cumprimentar e de se apresentar nos palcos – de forma mais largada, costas para frente em um estilo mais despojado; de mostrar o punho; de se movimentar, entre outras características; o que confere a participação em uma tribo específica e tipicamente marcada, de certa forma, ao mesmo tempo, de maneira “universal” (todo rapper possui marcas típicas comuns) e peculiar (cada qual tenta construir a sua imagem, dentro da tribo, mas também típica de sua voz, seu ser).

Apesar de constantemente aparecerem críticas ao consumismo desenfreado nas letras do rap, pudemos perceber que, nos membros do hip hop, bem como em outras tribos urbanas, o consumo faz parte da formação da identidade nessa faixa etária, pois os objetos de consumo, “não só agregam valor social aos seus portadores, como também os identificam em qualquer lugar, situação ou momento da vida” (COSTA, 2004), mas essa é uma temática que demanda uma outra reflexão mais cuidadosa (que, por conta do espaço, não abordaremos aqui).

Considerações Finais

Seja “tribos urbanas” seja, como também são conhecidas, “subculturas”[1]; o que se percebe é que tais jovens,  sujeitos ativos em seu campo de atuação, assumem, por meio de seus códigos culturais, uma posição periférica e central na cultura contemporânea (PAULA; PAULA; FIGUEIREDO, 2007). Como um importante terreno de produção – seja pela participação política, seja pela cultural ou até pela econômica; as tribos enxergam e criticam, nos grandes centros urbanos, algumas questões veladas ou ignoradas pela sociedade; sugerem um novo cenário para as metrópoles do país – em que a pluralidade da arte juvenil transforma-se em enfrentamento das marcas deixadas por fraturas sociais profundas. Nesse locus, as tribos denunciam fatos ainda latentes na sociedade contemporânea. O rap, por exemplo, assume em suas em suas letras e melodias a responsabilidade pelos passados não ditos, não representados, que ainda assombram o presente histórico. (BHABHA, 2007)

Esse debate social produzido no discurso das tribos não se transfigura como estável. Os participantes produzem e recebem réplicas, vistas como um “outro”, também ativo, em que se transformam os discursos-respostas, sempre pensando no “outro” que os vê ou, como diria Keske (2004), “Trata-se do permanente diálogo entre um “eu” que, por sua vez, não é solitário, mas solidário com todos os “outros” que com ele interage; e com todos os demais que ainda estão por vir”.

Referências bibliográficas

ANTONI, C. de; RODRÍGUEZ, Susana Núnez; SOUSA, Diogo Araújo de. “Relacionamentos de Amizade, Grupos de Pares e Tribos Urbanas na Adolescência”. In: HABIGZANG, L. F.; DINIZ, E.; KOLLER, S. H. (Org.). Trabalhando com Adolescente. Porto Alegre: Artmed, 2014. BAKHTIN, M. M. (MEDVEDEV). (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. BHABHA, H. k. O local da cultura. Belo horizonte: UFMG, 1998. CASTRO, L. R. (1998). “Estetização do corpo: identificação e pertencimento na contemporaneidade”. Em L. R. Castro (Org.), Infância e adolescência na cultura do consumo. Rio de Janeiro: Nau. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DPeA, 2002. KESKE, H. I. Dos sujeitos enunciadores e seus contextos dialógicos: Bakhtin e seu outro. Porto Alegre: UFRGS, 2004. MADRID, C. M. Tribus urbanas em Santiago de Chile: entre ritos y consumos. In: S. D. Burak. Adolescencia y juventud en América Latina. Cartago: L.U.R, 2001. MAFFESOLI, M. O Tempo das Tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa. Rio de Janeiro: Forense-Universitaria, 1987. PAULA, L. de. O SLA Funk de Fernanda Abreu. Tese. Araraquara: UNESP, 2007. Disponível em http://portal.fclar.unesp.br/poslinpor/teses/luciane_de_paula.pdf RACIONAIS MC’s. “Nego Drama”. Nada como um Dia após o Outro Dia.  Cosa Nostra, 2002. ZENI, B. O negro drama do rap: entre a lei do cão e a lei da selva. São Paulo, 2004. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142004000100020

[1] Preferimos o termo “tribo urbana” por posicionamento axiológico. Não acreditamos ser a cultura hip hop e, em especial, o rap, uma “subcultura”. Tal termo (“subcultura”) hierarquiza as manifestações culturais e classifica, sem grande critério, as culturas como “superiores” e “inferiores” – isso pode ser notado pelo prefixo “sub” e nos perguntamos: “sub” com relação a quem/quem? Se pensarmos no mainstream, podemos falar em cultura (ainda) excluída, “marginal” e “invisível” aos olhos do senso comum, central(izado) e enaltecido pela mídia global, como assinala Paula (no prelo), mas se pensarmos na papel sociocultural produtivo e reflexivo do movimento, o hip hop nada tem de “sub”.

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