Natasha Ribeiro de Oliveira
As pesquisas científicas voltadas para a análise de interações on-line, como em redes sociais, sites ou algum outro aspecto da vida digital não são novidades. Assim como a própria presença (simbólica e, por vezes, física) da internet em nossas vidas também não é, afinal, as novas gerações já deixaram de ser compostas por imigrantes digitais e passaram a ser de nativos digitais, como apontado por Marc Prensky (2001). Embora pareça que a internet seja “terra de ninguém”, como popularmente é dito, em termos de pesquisa e rigor científico, não podemos compactuar com tal pensamento. Por isso, apresentamos, de forma breve, algumas questões que devem ser consideradas em relação a um estudo que se propõe a analisar as interações on-line a partir da perspectiva da etnografia digital e como o sujeito-pesquisador e o seu outro, o sujeito-pesquisado (corpus), muito caros à abordagem dialógica, são concebidos nessa perspectiva metodológica.
Segundo Hine (2000), a internet é um artefato cultural, a inserção de tal tecnologia em nossa vida cotidiana é tamanha que não cabe mais pensar, como antes, em irrealidade ao se falar de vida on-line, pois o virtual deve ser compreendido como uma possibilidade do real, um novo formato de realidade, como pontua Lévy (2000 [1997]), não de situação dicotômica e oposta, em que tudo que está on-line não seja embasado em situações da vida off-line. Como Hine (2016) pontua, as mídias sociais transformam as nossas experiências de identidade (aqui, ressaltamos, pautadas na alteridade), de interação e as fronteiras sociais, pois os ambientes on-line e off-line transformaram e continuam a transformar a sociabilidade.
Dentre tantas possibilidades, o pesquisador que se propõe a compreender as interações em ambiente on-line pode fazê-lo na forma de um “lurking” (BRAGA, 2006), com o objetivo de observar determinado grupo, situação ou sujeito sem a necessidade de se manifestar para não interferir nas relações que ocorrem de maneira espontânea e natural, sem ser estimulada ou frojada. Por isso a etnografia digital, com as suas variadas possibilidades de execução, por meio da análise das redes sociais, tornou-se um instrumento para a compreensão da sociedade (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2011). Aí é que está o papel do sujeito enquanto pesquisador e do seu outro (que, aqui, entendemos como o corpus, seja em qual formato for, e que temos chamado de sujeito-pesquisado).
Neste sentido, um ganho para o pesquisador e para as análises feitas em ambiente virtual, na abordagem da etnografia digital, é poder analisar as atividades on-line que deixam “traços visíveis de audiência” (HINE, 2016), ou seja, que mesmo já tendo acontecido, ainda são possíveis de localizar mediante mecanismos de busca e acesso, o que possibilita, portanto, acessar determinados modos de ser e estar em certo período histórico e social, como uma leitura do agir do sujeito-pesquisado naquele momento específico que, por vezes, pode já ter acontecido há meses, anos e até décadas e, ainda assim, ser recuperado pela estrutura disposta no social. Assim é que compreendemos que há muitas e diferentes vozes a ser ouvidas neste ambiente on-line, que divergem entre si, entram em tensão, embate dialógico, sem fim, porque nada é dito do nada, mas sempre em relação com algo que veio antes (e após), o que Bakhtin e o Círculo entendem como o elo da comunicação discursiva de em enunciado.
A pesquisa que se propõe a analisar as interações on-line precisa, portanto, estar ancorada nos princípios da etnografia digital que, por sua vez, possui diferentes tipos de realização de coleta de dados e análise. Ressaltamos, aqui, a perspectiva dialógica como uma aliada neste tipo de análise, por entendermos que “por trás” de todo e qualquer corpus há um sujeito falante, que enuncia e deixa a sua assinatura autoral, seja em qual formato for. Desse modo, há, ali, uma voz social que marca social e historicamente determinados posicionamentos, que são visões de mundo, por sua vez, entendidos como a voz social de um determinado grupo. Pensar, junto ao Círculo de Bakhtin, em um sujeito-pesquisador e um sujeito-pesquisado, como as interações on-line em redes sociais é também pensar que há sujeitos falantes nas duas vias: o sujeito que fala e fala tanto quanto o sujeito por quem ele fala. Ou seja, o corpus (o sujeito-pesquisado, como temos chamado), fala tanto quanto o pesquisador, de modo que cabe a ele dar voz, em sua pesquisa, a esse sujeito, para que ele seja ouvido, na pesquisa, na mesma proporção em que ele fala.
A perspectiva dialógica comporta a ideia de que um texto deve ser visto no seu contexto e na relação com outros textos, o que nos permite considerar o caráter responsivo e responsável do(s) enunciado(s) (ou, dos textos, como está nos escritos bakhtinianos) para analisar esse sujeito-pesquisado que fala tanto quanto o sujeito-pesquisador na pesquisa. Bakhtin diz: “Cada palavra (cada signo) do texto leva para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos. […] A índole dialógica desse correlacionamento” (BAKHTIN, 2011, p. 400). A partir disso, podemos escutar outras e diferentes vozes a partir de um dado texto, colocadas em diálogos e recuperadas por meio do contato com outros contextos:
O texto só tem vida contatando com outro texto (contexto). Só no ponto desse contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo. […] e um contato dialógico entre textos (enunciados) […]. Por trás desse contato está o contato entre indivíduos e não entre coisas (BAKHTIN, 2011, p. 401).
Esta escuta-ativa do pesquisador é extremamente necessária nas pesquisas, não só as de abordagem dialógica, etnográfica digital ou de qual cunho seja, pois é o ganho das Ciências Humanas: conseguir inserir o sujeito e toda a sua subjetividade (pautada na alteridade) na pesquisa, com caráter científico. Analisar os sujeitos e suas interações, de forma on-line ou off-line, é uma forma de apreender modos de comportamento que são específicos de um ou outro ambiente, e que não se enquadram de maneira igualitária em outro espaço não porque os sujeitos são outros, mas porque os gêneros que permitem a comunicação são outros.
Com isso, não estamos dizendo que o sujeito-pesquisado, por exemplo, é um duplo, que adquire “máscaras” para lidar em ambiente on-line, mas que a comunicação na internet é diferente de uma comunicação face a face, por isso que há a necessidade de procedimentos e abordagens próprias para este tipo de pesquisa e análise. Hine (2016) defende que a internet é um componente do dia-a-dia e que a usamos de maneira despercebida, com os dispositivos móveis incorporados às nossas vidas. Segundo a autora
O uso da internet torna-se significativo para nossas compreensões da identidade e responsabilidade, e transformador de nossas estruturas de recompensa, confiança e reconhecimento. Qualquer fragmento individual dos dados derivados da internet é, por isso, passível de ser interpretado de uma série de formas, dependendo dos contextos em que se incorpora e adquire significado (HINE, 2016, p. 16).
As escolhas metodológicas são de extrema importância para a pesquisa científica, por isso que cabe, ao sujeito-pesquisador, clareza sobre os caminhos a serem percorridos, para justamente entender qual tipo de abordagem que o próprio sujeito-pesquisado vai demandar, pois como dito, ele fala tanto quanto o pesquisador. Com os dados provenientes da internet e das interações on-line não é diferente, a análise e interpretação podem ser feitas de determinadas formas, mas todas vão remeter e ser um retrato, ainda que com nuances diferentes, do momento específico em que foram produzidas, bem como dos sujeitos que as produziram. Frisamos, por fim, como o contexto do próprio sujeito-pesquisador encaminha e determina o percurso da pesquisa, ao considerar que ele é fruto da sua época. Ou seja, as valorações e sentidos aos quais ele responde são provenientes do próprio contexto por ele vivenciado. Nesse sentido, o sujeito-pesquisado é também um reflexo e refração de um momento tido como atual, mesmo que não sejam dados recentes, pois revelam modos de ser e compreender não só a contemporaneidade, mas também tempos passados, a partir de pistas deixadas e coletadas pelo próprio sujeito-pesquisador, confrontadas e colocadas em diálogo com outros sujeitos-pesquisados, textos e/ou enunciados.
Referências bibliográficas
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Metodologia das ciências humanas. Estética da criação verbal. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2011, p. 393-410.
BRAGA, Adriana. Técnica etnográfica aplicada à comunicação online: uma discussão metodológica. UNIrevista, vol. 1, n° 3, julho 2006.
FRAGOSO, Suely; RECUERO, Raquel; AMARAL, Adriana (orgs.). Métodos de pesquisa para internet. Porto Alegre: Sulina, 2011.
HINE, Christine. Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia. In: CAMPANELLA, Bruno; BARROS, Carla. Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológicos. – 1. ed. – Rio de Janeiro: E-papers, 2016, p. 11-28.
HINE, Christine. Virtual Ethnography. London: SAGE Publications, 2000.
LÉVY, Pierre. Inteligência coletiva. Edições Loyola, 2000 [1997].
PRENSKY, Marc. Digital natives, digital immigrants part 2:Do they really think differently?. On the horizon, 2001.
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