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Sofia “Fome Come”

Luciane de Paula

“Gente eu tô ficando impaciente A minha fome é persistente”

Para aqueles que estão perdidos com a corrente da “infomaré”, como cantaria Gil, perguntando-se “Como e o que faço com tanta informação?”, minha resposta é: Antropofagia! Devore!

Mais uma (informação/reflexão) pra coleção, então. Essa, inspirada em Sofia, a sabedoria de 7 anos que, personificada, caminha, fala, canta e encanta a todos com suas perguntas e reflexões profundas, como as de Manoel de Barros. Sofia não convida, ela se atira e nos arranca de nossa inércia a habitar o seu mundo. Com esse ponto de vista, num prisma caótico de quem tenta captar as refrações iluminadas que antes não via, tento, a partir das reverberações de vozes que ouço e vejo, chamar a luz de fora da minha caverna tão confortável, sem me arriscar cegar, jamais olhando diretamente para a luz-realidade que, de fato, nem sei se existe, mas não me importo mais com isso, uma vez que é a produção da significação que me atrai e rouba a atenção, hipnoticamente.

Lembrando-me de um tempo atrás, quando eu e Sofia, de “mãos dadas” e sem nos afastarmos muito (como diria Drummond), cantávamos e dançávamos, bem como tentávamos aprender a percussão com mãos e copos (a la Barbatuques), no ritmo cada vez mais acelerado da canção “Fome come” (de Sandra Peres e Paulo Tatit – isso mesmo, o irmão do Luiz que eu tanto cito), da Palavra Cantada, peguei-me sem pensar, fluida, como se quer esta escrita, automática, tentando angariar diálogos sem pensar em suas conexões racionais ou amparados pelo academicismo e, para a minha surpresa catártica, veio à minha mente: a antropofagia come come. Olhei para a Sofia e a vi me ensinando como é que a Fome come, com suas mãozinhas batucando e sua voz entoando a canção numa naturalidade que eu havia perdido. Ao observar, desconcentrei-me, fiquei perdida no tempo-espaço da canção performática. E pensei, tentando recobrar a razão de uma professora-pesquisadora que não se dá o respeito: É isso o que a academia faz com a gente. Desumaniza. A gente deixa de ter reflexos, de re-agir, não atua, só repete fórmulas de que não devemos repeti-las. Eh, estamos precisando da sabedoria de Sofias, de devorar a fome que come. Por isso, peço ajuda a ela para tentar me despregar de meu ostracismo costumeiro e dançar com as palavras aqui. Isso porque de nada adianta entoar que

“Gente eu tô ficando impaciente A minha fome é persistente Come frio, come quente Come o que vê pela frente Come a língua, come o dente Qualquer coisa que alimente A fome come simplesmente Come tudo no ambiente Tudo que seja atraente É uma forma absorvente Come e nunca é suficiente Toda fome é tão carente Come o amor que a gente sente A fome come eternamente No passado e no presente A fome é sempre descontente”

Nada adianta essa fome automática que nada alimenta. É preciso reaprender a comer. Sim, estou nessa fase. Sentir a cada mordida, mais, a cada toque da língua, o sabor do alimento. Feito recém-nascido, reaprender a ter sensações gustativas de vida. Sabor pela vida. Saborear o saber. Sofia, help me. Saber saborear requer operações cirúrgicas precisas. Isso mesmo. Não no corpo, mas na mente, no espírito, na língua. Transformar em ato cada mordida, pensada conscientemente, sem automatizar em ação para que o estômago não grite. Ser, toda, “Coração cabeça estômago” (Camilo Castelo Branco).

Para tentar trazer ao corpo essa estratosfera solta, seguem quatro vídeos da Palavra Cantada. Versões da mesma canção – que, enunciada, não são a mesma, mas muitas:

. o primeiro é de um show completo, chamado “Brincadeiras Musicais” – vejam a partir dos 19 minutos e 35 segundos a canção citada com uma outra, anterior…a brincadeira com o copo e as palmas é uma delícia…treino com a Sofia (E tem gente que pensa que isso virou moda nos Estados Unidos há pouco tempo e chegou aqui via “Caldeirão do Huck”, nada disso minha gente. A brincadeira é “véia” e boa);

. o segundo só da canção “Fome come”, de um outro show, o Pé com Pé, só com Paulo e Sandra;

. o terceiro só com os brincantes da trupe, num festival de canção “infantil” de Curitiba; e

. o último, do clipe oficial da canção, cantada por Sofia e por mim – foi com esse que me perdi para, aqui, tentar, agora, encontrar-me, ainda em êxtase.

 A mim, os clipes lembram muito uma mistura de concretismo, Secos e Molhados e Hermeto Paschoal, em especial o último. Vejam se gostam. Melhor, antopofagiemo-nos com eles. Ou, como canta Adriana Calcanhoto (em “Vamos comer Caetano”): “Vamos comê-lo cru” (em diversos sentidos). Isso mesmo: “Pela frente / pelo verso / vamos lamber a língua”. Pelo verso, em especial. Afinal, já pregavam os modernistas de 1ª. geração (essencialmente, Tarsila, Oswald e Mário) e os concretistas retomaram (sobretudo, Augusto e Haroldo de Campos): o verso é multimodal, música e imagem da língua. “Verbo-voco-visual”, como denominou Décio Pignatari a potencialidade semiótica da poesia concreta – tal qual a palavra cantada de “Fome Come”. Concretamente enunciada. Enunciado enunciado que é enunciação. Ato em ação com a performance “brincadeira”. E como muda a cada enunciação (basta reparar cada realização entoada em cada vídeo). Ler a letra, escutar a canção e assistir ao vídeo são práticas completamente diferentes.

A Tropicália (destaco Torquato Neto e Caetano) arrasa e Arnaldo Antunes (nem comentarei nada sobre essa minha paixão) explode na contemporaneidade com essa “Comida” titânica tão brasuca. Por que e como conseguimos esse feito enunciativo sincrético, mais, híbrido, tão típico da contemporaneidade e tão nosso? Somos assim, antropófagos. Devoramo-nos. Nos nós nus – ora apertos, ora amarras frouxas, mas sempre na nudez além da roupa e do famigerado corpo sígnico, pois a medula óssea se encontra no discurso que, por sua vez, instaura-se no não-dito, mais que explícito, implícito e subentendido, na pausa, no ritmo, na cadência, no molejo que come come gamers, antigos e clássicos da modernidade e da pós-modernidade.

O estômago é o órgão da contemporaneidade. Será q é por isso q sofremos tantas gastrites, hérnias, úlceras e demais inflamações? Falta-nos mastigar e digerir melhor o mundo, gestar a vida e vomitar “estrelas de mil pontas” (além da hora da morte)? Temos sofrido de má digestão. Então, mastiguemos direito nossas leituras e matemos nossa fome sem sermos ruminantes ou sendo-os. Ruminar também é importante. Ruminar a ideia, deixa-la brotar de dentro, não engolir qualquer coisa, barrar o que faz mal, adverte-nos corpos saudáveis, tidos como des-ajustados des-ajuizados.

E que fome é essa que temos, de tudo: informação, formação, ato-ação? De onde vem?

“Se vem de fora

ela devora, ela devora (qualquer coisa que alimente) Se for cultura

ela tritura, ela tritura Se o que vem é uma cantiga

ela mastiga, ela mastiga Ela então nunca discute

só deglute, só deglute E se for conversa mole

se for mole ela engole Se faz falta no abdomem

fome come, fome come”

Vem de dentro, de fora, dos lados, de todo lugar. Fome além da fome. Fome de alimento nutritivo além da comida literal (claro que essa também é essencial). Fome de todas as comidas. Fome de comer o outro: outra cultura, outro alimento, outro sujeito, outro enunciado, de todos os lados – frente, verso, avesso – em todos os tempos e lugares – “na rua, na chuva, na fazenda / ou numa casinha de sapé” (Hyldon), “no chão, no mar, na lua, na melodia” (Rita Lee e Roberto de Carvalho), em qualquer posição (o kama sutra da Palavra que nos aguarde no osso, no oco, espesso e fluido). Fome de não-pensar, não-correção, nada padrão. Fome de diversidade(s) e diferenças. Fome humana porque “somo inclassificáveis” (de novo, Arnaldo Antunes)! Fome antropofágica.

A Sofia é quem sabe o que é antropofagia e palavra cantada. Mas, na dúvida, outro dia, resolvi perguntar e escutei ativamente que “Fome é quando dá aquela dor na barriga da gente e a gente tem que comer” e, entoando no ritmo que adora (do último vídeo), continuou sua resposta com a Palavra Cantada:

“Come o que vê pela frente Come a língua, come o dente Qualquer coisa que alimente A fome come simplesmente Come tudo no ambiente (…) É uma forma absorvente (…) Come o amor que a gente sente A fome come eternamente (…) Fome come, fome come”

E terminou com “Come come / come come” fazendo som de barulho de dente rangendo a gente pelo meio. Senti-me triturada, esmagada, deglutida, digerida. Aqueles dentinhos que, de leite, estão se tornando, pouco a pouco, permanentes, ainda são móveis (que bom!) e me mastigaram até por suas janelinhas. Senti-me passando por tudo: lábios, dentes, gengiva, palato, língua e, antes mesmo que eu pudesse esboçar reação, escorreguei pela laringe e me vi, como Dóris (de Procurando Nemo), tendo de arriscar “sofiês” para ser cuspida daquele estomagozinho tão efetivo! Que bom que vamos, juntas, conhecendo o cancioneiro brasileiro e ela me ensina a deglutir, mastigar bem e digerir tudo…ainda mais com suas janelas…Aproveitemos!

Antropofagiemo-nUs todos, com sofias mil!

Tem muita informação no mundo, de toda espécie e sobre tudo. Nós é q temos de aprender a direcionar, escolher e, acima de tudo, a partir disso, digerir bem, o bem, com alguém. Trocar. Gerar outra e mais in-formação. Lixo (do) luxo? Luxo (do) lixo? LU xô! Ok…tô indo…tô indo…cheia de fome. Acho que já tem comida suficiente por enquanto. “Fome come, fome come”. 😉

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