top of page

Ser humano: ser inconcluso e múltiplo

Jessica de Castro Gonçalves

“mas nossa consciência nunca dirá a si mesma a palavra concludente” (BAKHTIN, 2011, p. 14)

Ser humano. Ser como substantivo: um sujeito que é humano. Ser como verbo: ato de ser, de se fazer humano. Humano como adjetivo: característica conferida ao ser. Humano como substantivo: o sujeito.  Duas palavras e uma complexidade instaurada: o ser humano surge pronto ou se faz humano? Neste pequeno texto refletiremos sobre o prazer de ser e de se fazer humano.

Antes de tudo é necessário refletir sobre o  ‘Eu’. Palavra de apenas duas letras. Tão pequena. Um simples pronome pessoal do caso reto da primeira pessoa do singular, o qual pode ocupar a posição de sujeito e se referir a apenas uma pessoa, a primeira do discurso. Será? Seria isto ‘eu’, tão simples e limitado? Seria este tão singular (pensando na categoria gramatical de número oposta a plural)?

 Pensemos em nossa trajetória de vida. Nascemos e nada sabemos. O primeiro contato que temos com o mundo se faz por intermédio de outros sujeitos, os nossos pais, ou aqueles que esta posição assumem. Nada conhecemos, nem linguagem, nem nomes, nem valores, nem crenças. Tudo nos chega através deles.  Na escola, outros aparecem com novos mundos, novas histórias, novas ideias, novos valores. Somos modificados. Crescemos, estudamos e trabalhamos. Lemos, vemos e ouvimos. Em tudo interagimos com outros diversos. Voltamos para a casa de nossos pais depois de formados e estes nem sempre conseguem reconhecer em nós o filho que eles criaram. Somos um em nossos lares, somos outros em nossas empresas. O eu que se apresenta ao chefe, diferencia-se daquele conhecido pelo amigo, o qual se diferencia ainda daquele conhecido pelo esposo. Somos vistos de uma determinada maneira agora, e de outra totalmente diferente daqui a pouco.

 A palavra ‘eu’ possui uma pequenez aparente que se mostra inversamente proporcional à complexidade da existência do sujeito. O eu só existe na medida em que pensamos na existência do outro. O eu só se forma na medida em que se relaciona com esses outros, sendo para cada outro um eu diferente. Um sujeito possui diferentes eu’s. Um eu possui diferentes sujeitos que o constituem.

 Segundo Bakhtin (2012), a consciência não nasce formada e não se constitui pela ação do próprio ser sobre si, mas está em um contínuo e inacabável processo de formação nas diversas interações estabelecidas em sociedade. O ser só se torna sujeito humano diante da existência do outro. Agimos tendo em vista sempre a imagem que o outro terá de nós, a construção de uma imagem externa.

É verdade que na até na vida procedemos assim a torto e a direito, avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência: desse modo, levamos em conta o valor da nossa imagem externa do ponto de vista da possível impressão que ela venha causar no outro (BAKHTIN, 2011, p. 13)

O Eu gramaticalmente classificado como singular, na verdade é múltiplo, constituído dos outros com que se relaciona. Eu é sempre multidão. No entanto este nunca está pronto e acabado pois, se cada interação permite sua alteração, ele está sempre em processo de acabamento, nas vária relações com os diferentes outros, sendo inconcluso.

Observemos como na obra Paranoic Visage de 1935 de Salvador Dali para pensarmos como essa constituição do sujeito, do ser humano se dá:


blog

A obra acima é composta por vários sujeitos. Estes são diferentes entre si e ocupam determinados lugares na sociedade em que se situam. Juntos eles compõem um outro, cada um de uma forma, um forma o olho, outro forma a boca, outro o nariz e assim consequentemente. No entanto, o sujeito formado não tem a visão completa de seu acabamento, só nós, na condição de seu outro, é que temos acesso a essa imagem externa. Porém esse acabamento é momentâneo, pois a medida que a relação entre os sujeitos se modificarem, um outro rosto (um outro sujeito) pode se formar.

 Da mesma forma nós nos fazemos seres humanos, pelas diversas interações com os diversos outros em sociedade. Só sujeitos é que constituem sujeitos. Só na relação com outros que eu me faço ser humano. Não nasço pronto, e sozinho não recebo a qualidade de humano, mas me torno humano em cada viver com o outro, me completando em cada relação e nunca estando completo.

Para Manoel de Barros

“A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.”

Ser humano é ser sempre incompleto e precisa a cada momento do outro. Um sujeito não é humano sozinho, mas precisa dos outros para se formar, se alterar e se renovar. Assim como a borboleta tem uma vida de constante alteração, de lava ,a casulo, a borboleta, nós sujeitos estamos sempre inconclusos e em processo de mudança na multiplicidade de sujeitos (outros) em nossa vida. Como diz Bakhtin, na citação que inicia esse texto, nunca diremos a nós mesmo a palavra concludente, pois esta só pertence aos diversos outros, com os quais convivemos ao longo de um viver todo.

Referências

BAKHTIN, M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012.

1 visualização0 comentário
bottom of page