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Reflexões sobre o sujeito na pós-modernidade

Marcela Barchi Paglione

Pensar na constituição do sujeito para o Círculo de Bakhtin requer uma discussão sobre sua posição insubstituível e responsável no lugar único da existência, ou seja, que nenhum outro sujeito naquele momento e lugar exatos poderá ocupar o seu lugar na vida, por isso ele se torna responsável por sua posição e seus atos. O seu lugar insubstituível também implica a sua relação com o outro, uma vez que o outro, do seu lugar único, contribui para a formação do eu com sua visão enformante do todo, completando-o. O outro me completa, me vê como um todo, parte do plano pictórico e ético do horizonte da vida. Eis porque, para o Círculo, pensar o eu envolve pensar o outro, numa relação intrínseca e numa via de mão dupla, pois o eu também completa o outro. É pensar que não há eu sem outro, da mesma forma que não há outro sem mim, o outro-em-mim e o eu-para-o-outro.

Em Estética da Criação Verbal (1979), discute-se com base na relação autor-personagem, a questão estética da posição de fora do outro, o qual, do seu lugar, tudo de mim vê, tem o chamado “excedente de visão estética” e, portanto, pode me dar acabamento. No entanto, mais do que uma questão estética, o que está em pauta é uma filosofia ética da alteridade como princípio do sujeito responsável no evento da existência.

Para o Círculo, o sujeito é situado sócio histórico culturalmente, em uma dada sociedade e espaço tempo nos quais estarão presentes os valores sociais que adentram as relações entre os sujeitos e a própria condição de ser/estar ativamente no mundo. Há uma grande diferença na concepção do sujeito ou dos valores de individualidade e alteridade se pensarmos esta filosofia na época pós-moderna ou contemporânea (não adentraremos aqui nas divergências sobre este termo). Alguns pensadores chegam mesmo a afirmar uma inversão de valores na sociedade. Um tema em voga no assunto da condição do sujeito pós-moderno é a perda da noção de valores na sociedade, o sujeito à deriva, o que causa uma angústia. Penso ser um tempo de crítica aos valores inscritos, aos tradicionalismos nos quais os sujeitos, em suas relações, refletem e refratam a ideologia, trazendo à tona valores para os refutar e assim construí-los novamente.

 O que importa para nós, nesta discussão é a maneira como a relação eu-outro, na atualidade, é aparentemente enfraquecida em favorecimento de uma cultura narcísica, na qual a figura do eu prevalece sobre a do outro. Ao pensarmos nas representações discursivas da vida privada, podemos ver que a categoria de sujeito que pode ser definida em três partes, o eu-para-mim (a visão que tenho sobre mim), eu-para-o-outro (a visão e enformamento do outro sobre mim) e o outro-para-mim (a visão que eu tenho do outro) é modificada ou até alterada. O eu-para-mim é cada vez mais um eu-para-o-outro, eu mostrado ao outro, conforme o desejo de adoração. A visão que o outro, ou os outros, se pensarmos em toda a sociedade, tem de mim é a que me define enquanto sujeito social. Há uma supervalorização do sujeito egocêntrico em detrimento aparente da alteridade.

Seria a figura do outro em desfavorecimento na sociedade em relação à do eu? Penso que esta categoria do ser está engendrada na relação com o eu mais do que nunca, mas não em favorecimento de uma sociedade pautada no respeito pelo próximo, fundamentada na alteridade como princípio, o que seria próprio da sociedade civilizada, segundo Birman (2012). O outro entra, mais do que nunca, a meu ver, como valorador social do eu, o qual necessita de seu amparo, ou feedback, para compor a imagem de si, a qual teria assumido a posição mais importante na composição do eu na contemporaneidade. De acordo com o autor, saímos de uma cultura intimista e reflexiva, pautada na razão, que seria típica da modernidade, para uma cultura da expansão do eu, performativa (daí o sentido de espetáculo de Debord) na pós-modernidade.

É possível que esta seja uma visão psicológica um tanto quanto pessimista do sujeito contemporâneo para Birman que trago para discussão, relacionando-a ao conceito de sujeito para o Círculo, e certamente que este não é o único aspecto da categoria do sujeito na nossa era, mas podemos pensar nesse, que sempre é situado sócio histórico e culturalmente, como fruto de uma sociedade que visa a autoafirmação, sendo para  isto o outro como uma ferramenta, o que é plenamente visível em redes sociais de grande alcance (nas quais vemos inclusive pessoas que trocam “curtidas” em suas fotos, somente para aumento do número, e com isso, do seu prestígio). No plano da linguagem, esta é a época em que surge o signo selfie, criado como identificação de fotos em primeira pessoa as quais são associadas a sites de compartilhamento. Sabemos que não é ao acaso. Ainda segundo Birman, o sujeito contemporâneo está tomado por um novo mal-estar, condizente com a atualidade, no qual há o culto do corpo e da saúde e compulsão por compras e toxicômanos como maneiras de escape pela ação, pois não cabe mais a ele suportar o excesso. Seria a selfie uma forma de compulsão como escape, junto ao culto do corpo e à imagem de si frente ao outro?

Ao situarmos os sujeitos em seu local único no existir-evento, percebemos que estes estão em permanente (re)construção a partir das relações sócio históricas e pessoais de que participam e estas refletem e refratam a ideologia do “desconcerto”, do chamado “mal-estar” da contemporaneidade. As instituições, segundo Bauman (2001), estão liquefeitas na pós-modernidade, trazendo dificuldades ao sujeito de estabelecer um pertencimento. A identidade se torna fluida na Rede, na qual as relações entre os sujeitos tornam-se leves e o próprio conceito de amigo entra em choque (como as novas formas de amizade comentadas por Bauman e disponíveis neste link).

Assim, as categorias do eu e do outro, no que tange sua interação, tornam-se instáveis pois estão inscritas em uma sociedade culturalmente instável, em que os valores e instituições entram em questionamento. É neste ambiente em que o eu se torna dependente da aceitação do outro, para sua autoafirmação enquanto sujeito, ou melhor, na construção de sua identidade, e isto se deve ao fato de os seus valores estarem em desequilíbrio.


REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BAUMAN, Z. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001 BIRMAN, J. O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

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