Mirian Valéria Gomes Sabeh[1]
Ao pensarmos sobre as relações de poder disciplinares pertinentes ao universo escolar, no âmbito de espaço institucional, desde as pequenas atitudes que representam e acabam por dar forma e materialidade as relações de poder, esse estudo se assenta às teorias de Foucault, que em sua obra Vigiar e Punir, objetiva o entendimento da dinâmica do poder, por meio de sua militância em diversas prisões de vários países. Ademais, evidencia o que sai de foco e desconstrói diversas ideias que são impostas como corretas, únicas , instituídas há muito tempo na sociedade.
Para entendermos essas ideias impostas Foucault traz à luz estudos sobre as relações de poder e as formas como o mesmo é constituído e exercido. Dessa forma, com base nas reflexões sobre como se firmam o poder, a disciplina, revolta, resistência, liberdade, obediência, analisaremos como se revelam comportamentos, discursos e sentimentos no universo escolar.
Antes de chegarmos a uma análise, é de extrema necessidade que compreendamos os estudos de Foucault com relação às instituições. No caso em estudo, a instituição escolar especificamente. O autor trata das diversas instituições, fábricas, prisões, hospitais psiquiátricos, quarteis e escolas como “instituições de sequestro”, perpassando pela sociedade disciplinar.
As instituições, conduzidas por políticas que visam controlar de forma hierárquica a partir da prescrição de comportamentos humanos homogêneos e já estabelecidos, mas Foucault não centraliza o exercício de poder especificamente na política ou no governo (como a concepção marxista), mas pontua que o poder está em todos os lugares e que atinge todas as pessoas. O autor ressalta que não há um poder único, mas práticas de poder que se espalham em todas as estruturas sociais através de diversos mecanismos, disciplina.
A disciplina no ambiente escolar é estabelecida com base em regras a serem cumpridas e mantidas de modo que haja certo controle sobre o aluno. Este não pode falar durante a aula, não pode ir ao banheiro na primeira aula e quarta aulas e nem ir ao banheiro duas vezes na mesma aula. Essas regras são válidas também em relação ao beber água. Esses são alguns exemplos. O professor também deve cumprir certas regras, como não se ausentar da sala de aula, ser cuidadoso com as vestimentas e deve calar-se diante de “grosserias” de alunos para com ele. Tudo em nome da ordem, do relativamente correto.
Foucault, afirma que o poder nas sociedades está ligado ao corpo e que é sobre o mesmo que são impostas limitações, obrigações e proibições. Dessa maneira, para o autor, surge a noção do corpo dócil, que pode ser utilizado, transformado em função do poder. Esse elemento intra-escolar, que é a disciplina, alimenta e alicerça a escola. Foucault define disciplina como um método que permite o controle das operações do corpo, que o submetem, impõe essa relação de docilidade-utilidade.
O olhar hierárquico e uma punição “normalizadora” são exemplos de técnicas minuciosas que englobam o poder disciplinar, encaminhar à coordenação, observações em livros de registros e ocorrências, notas em boletins, avaliações, controle de frequência, estratégias e táticas utilizadas para que permaneça a “normalidade”.
Os professores também fazem parte dessa forma estruturada de poder, como sujeito que obedece as regras e é pressionado pelo alcance de índices em avaliações monológicas “propostas” por instituições de poder aos alunos, que objetivam não a formação de um cidadão e nem ao menos de um vestibulando, mas sim, aquele que é passível de se vigiar e controlar. Os alunos são “medidos” por números de acertos em questões avaliativas que não refletem o que pensam e/ou o que realmente sabem ou sua capacidade.
A arquitetura escolar proporciona um ambiente favorável às práticas de vigilância. Carteiras perfiladas, professor em um espaço reservado frente aos alunos, janelas com grades e câmeras em todos os ambientes, tudo para promover a “segurança” de todos em um sistema de controle hierárquico, vigilante. A intenção é poder controlar para que não haja a necessidade de punir, porém pune-se através de anotações em cadernetas, avaliações monológicas, notas, conselho de classe, mecanismos que compõem um sistema punitivo que engendra o sistema educacional.
A questão disciplinar permeia todos os diálogos em meio a planejamento didático, comunicados, reuniões periódicas e até mesmo no momento de intervalo na sala dos professores, uma preocupação do cotidiano escolar. Nessa perspectiva: “[…] o poder e o saber produzidos pelas normas disciplinares são fundamentais para a organização burocrática. Em uma sociedade de instituições burocratizadas como a nossa, o poder disciplinar se desenvolve em todo tecido social”. (KRUPPA, 1994, p. 102). O poder disciplinador está direcionado para a escola, mecanismos de vigilância na construção do “saber” educacional, ensino através da vigilância e mecanismos disciplinarizadores a fim de moldar os alunos que participam do sistema escolar.
Todos os anos as ações pedagógicas são revistas, tentativas de melhorias nos programas, novos materiais didáticos, projetos educacionais, inúmeras discussões sobre esses tópicos surgem em meio a reuniões, mas, tudo termina por ganhar uma roupagem diferenciada, o fundamento continua o mesmo, seguindo o padrão imposto por um poder controlador, que busca disciplinar os alunos, professores e demais profissionais da educação. Muitas vezes, durante as discussões sobre projetos a serem desenvolvidos com os alunos, são apresentadas propostas idealizadoras, com bom fundamento e função útil de aprendizado, mas no momento em que essas propostas interferem na estrutura da sala de aula, ou seja, algo que tem de ser desenvolvido fora do sistema padrão (lousa e giz, alunos perfilados). Mantem-se certa resistência de coordenadores, direção e até mesmo de alguns professores, pois os alunos vão “sair do controle”, da vigilância, do aparentemente local seguro. Assim sendo, continua-se com toda a idealização no papel e segue-se dominado pelo poder controlador.
Para que toda essa disciplina se realize é necessário que haja um espaço onde os sujeitos possam ser vigiados, seus comportamentos visualizados para um melhor controle para que respeitem normas, um sistema punitivo com a função normalizadora. Sob essa ótica, a escola é vista como espaço útil e funcional, pois os alunos são distribuídos em salas de aula, separados pela idade, muitas vezes por nível de aprendizagem, comportamento, são dispostos em filas, tudo para uma melhor vigilância e controle, e nesse tipo de distribuição, o professor tem uma grande parcela de colaboração e culpa.
A distribuição das salas em fileiras, alunos uniformizados, sempre em ordem, tem o objetivo de manter a obediência dos mesmos. A escola dessa maneira, sua estrutura física, muito parecida e comparada com a estrutura das prisões, não somente por Foucault, mas também pelos discursos dos alunos, pois num local onde não pode haver comunicação, portões fechados sem visibilidade, refeitório comunitário, câmeras, muros altos, janelas com grades e horários controlados como os de ir ao banheiro e beber água, não existe outro local com o qual se pode comparar a estrutura da escola que não seja a prisão.
Esse poder disciplinador não é pertinente apenas na estrutura física da escola, mas também está presente no sistema interior e comportamental da escola, como a exigência do cumprimento de todo o horário de aula, para que professores e funcionários cumpram suas tarefas, produzam e assim, de forma hierárquica “obriguem” os alunos a se adequarem aso sistema, para que tudo funcione de maneira controlada e codificada, o controle do corpo, que requer que seja dócil como diz Foucault, dócil até mesmo em suas operações mínimas. Completamos que toda hierarquia de poder tem como fundamento o controle: “[…] um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior “adestrar”; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. (FOUCAULT, 1997, p. 153).
O poder disciplinar não tem a intenção de reter forças e sim fazer uma interligação, multiplicação, utilização, consolidando-se através da vigilância hierárquica e outros meios de punição. A rigorosidade (juntamente com outras regulamentações) funciona como um sistema punitivo, como a permissão da entrada do aluno na escola somente se estiver uniformizado, a ausência do aluno da sala de aula, apenas se estiver com o crachá do professor, são normas de circulação para evitar os desvios das sob as regras escolares. Segundo Foucault, esse sistema punitivo acontece a partir de:
[…] micropenalidades do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseira, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes incorretas, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência). (FOUCAULT, 1977, p. 159).
Quando transgridem a norma, a penalidade é consequente, conversas com os coordenadores, reunião com os pais, mudança de sala, ocorrência no livro escolar de ocorrências, prejuízo nas notas, em alguns casos, suspensão. Dessa maneira os alunos ficam receosos com relação às possíveis punições caso transgridam alguma das normas escolares. Dessa forma, temos uma eficácia das penalidades, e um funcionamento do sistema punitivo. Essas maneiras de punir são chamadas por Foucault de “gratificação-sanção”.
Um sistema que consiste em premiar os alunos exemplares e tornar operante a correção dos alunos em sala de aula. O sistema visa a utilização de mais gratificações do que sanções, assim, os alunos indisciplinados procurariam com maior afinco recompensas e se afastariam das penalidades. Mas, há um ponto importante nesse aspecto a ser considerado; muitas vezes o aluno indisciplinado não dá importância ‘a premiações, pois não tem incentivo em sala de aula pelo próprio professor e também pela família que em muitos casos está desestruturada, o aluno não vê nenhuma perspectiva com relação à premiação proposta.
Também esse sistema disciplinar que usa da premiação, acaba por comparar os melhores e os piores alunos e constrói uma relação de hierarquia de qualidades. Essa hierarquização vai além da comparação entre alunos, há também a comparação entre as salas, salas “boas” e salas “ruins”, são classificadas dessa maneira devido aos alunos que integram essas salas e que possuem essas classificações.
O sistema disciplinar é pertinente também nas avaliações. Através desse tipo de sistema(poder), o professor conhece seus alunos, compara-os ,classifica-os, treina-os para normalizá-los. “O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e a sansão que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 1997, p. 164).
As avaliações envolvem todo um esquema padronizado em sua estrutura, comportamento disciplinar e tempo. Durante a avaliação, os alunos devem estar perfilados, proibidos de qualquer conversa ou gesto e informados do horário de início da prova e término da mesma. Esse esquema de aplicação da avaliação reflete o poder, mostra o peso da disciplina na vida escolar. A avaliação permite comparar os alunos, analisá-los, obter um conhecimento sobre o aluno, suas aptidões, deficiências e a maneira como evolui ou desvia-se, mas, sempre ligado ao exercício de poder e não realmente ligado a um aprendizado dialógico.
Assim, a escola juntamente com suas “técnicas” de disciplina faz com que seus alunos aceitem esse poder de punir e também de serem punidos. E, dessa forma, a escola fabrica, define o sujeito-aluno, supostamente à sua maneira são e também maduro, dentro dos padrões acordados com a sociedade de poder.
Dessa forma, continuamos a indagarmo-nos se o sujeito-aluno está apto a libertar-se dessas algemas sociais padronizadas.O professor poderia ser a mola propulsora , o start inicial para uma possível libertação dessas algemas sociais e desvincunlar-se do que é de praxe, do que está enraigado em suas práticas automáticas forjadas pelo poder disciplinar , se não de maneira global, ao menos em partes que partilhem da mesma indignação educacional.
Referências
BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. : Hucitec. São Paulo,1992.
FOCAULT, M. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete.23ª ed. Vozes. Rio de Janeiro, 2000.
___. O nascimento da clínica. Forense Universitária. Rio de Janeiro, 2006.
___. História da loucura. Ed. Perspectiva. São Paulo, 1978.
___. Microfísica do poder. 15a Ed. Graal – RJ, 2000.
___. O que é a crítica? (crítica ou aufklarung). Trad. Antônio C. Galdino. IN: BIROLI, Flávia.
___. O homem e o discurso. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, 1994.
___. A ordem do discurso. Aula Inaugural no Collège de France, Pronunciada em 2 de Dezembro de 1970. Leituras Filosóficas. 11a Ed. Loyola. São Paulo, 2004.
KRUPPA, S. Maria Portella. Sociologia da Educação. Cortez. São Paulo, 1994, p. 102.
[1] Mestranda em Letras pelo Profletras – UNESP – Universidade Estadual Paulista FCL Assis -SP