top of page

O signo ideológico da irmandade na América do Sul

Rafael Junior de Oliveira

Viajar é uma palavra com muitos significados e ainda mais sentidos. Há quem diga que viajar é parte da vida, sendo esta uma grande viagem que, por sinal, não sabemos quando irá terminar. Aqui, atentar-me-ei a uma viagem específica que fiz recentemente e aos aprendizados de linguagem dela provenientes: a viagem ao Peru. A partir das informações fornecidas por guias locais e dos conceitos bakhtinianos ideologia e signo ideológico, empreender-me-ei uma discussão acerca do processo de formação do signo ideológico irmão e seus desdobramentos no Peru e também no Brasil, pois cabe relacionar o processo de colonização do país Andino com os acontecimentos recentes no território brasileiro.

Os povos andinos exibem uma riqueza enorme em termos de quantidades de celebrações, vestimentas, instrumentos musicais, danças etc., mas aqui cabe se destacar a importante relação desses povos com a linguagem. Diferentes povos ocuparam o território andino, logo diferentes línguas também existiram e coexistiram nesse território. A língua aimara e puqina, por exemplo, eram algumas dessas línguas faladas entre os países Peru, Bolívia, Chile etc. No entanto, a língua administrativa utilizada durante o império Inca foi a língua quéchua ou quíchua, que “unificou” de certo modo uma mesma língua para todo o império. Como qualquer processo de dominação e unificação, isto resultou em violência, por isso utilizo as aspas. No mais, o processo de formação do império Inca foi longo e a expansão ocupou grande território na América latina.

Feito o contexto histórico, cabe destacar, a partir das informações passadas por guias locais durante a viagem à velha montanha, como a formação dessa língua quéchua fez parte da interação entre o povo andino e os espanhóis. Ao chegar em Machu Picchu, no Peru, o guia iniciou a descrição do local e suas caraterísticas históricas, geológicas e arquitetônicas. No entanto, ele foi além e apresentou como foram os conflitos que ocorreram antes e depois da criação de Machu Picchu, visto que a cidadela foi um refúgio para o povo Inca após a perda da cidade de Cusco para os espanhóis e seus traços arqueológicos apontam que foi uma cidade criada para celebrar o grande reinado de Pachacuti.

Linguisticamente, foi destacado que na língua quéchua antiga não havia uma palavra para se referir a amigo, apenas havia a palavra pana e suas variações. Esta palavra significa, majoritariamente, irmão, o que teve implicações para o processo de colonização dos espanhóis. Segundo o guia, ao entrar em contato com um povo que não fazia separação entre amigo/irmão/inimigo, os espanhóis foram favorecidos no seu processo de colonização, já que alguns povos originários do Peru, por exemplo, os trataram como irmãos. Apesar de tal afirmação do guia ser duvidosa na sua completude, já que o Império Inca foi forjado sob batalhas e conquistas, ou seja, havia um conceito de inimigo, esse traço não deixa de ser importante, principalmente sob uma perspectiva volóchinoviana de linguagem. Isto se justifica porque a relação entre culturas, marcada e realizada pela língua/linguagem, também acontece via signos ideológicos.

Sendo assim, teriam os povos andinos e espanhóis um mesmo conceito de amigo? Tal pergunta já foi respondida, pois ficou claro que tal palavra[1] não existia na referida língua antiga. No entanto, a pergunta realmente importante é: havia um mesmo conceito de irmandade entre esses dois povos em questão?

Historicamente, sabemos que o signo ideológico irmandade varia em sentido em diferentes culturas, com suas implicações tanto no eixo do eu-para-o-outro, quanto no eixo do outro-para-mim. Se em uma cosmogonia capitalista, irmão é aquele que detém os mesmos direitos que o indivíduo dentro da hereditariedade familiar, o que acaba se destacando pelo direito à herança de bens, em outras cosmogonias, ele possui outras características. Nos povos andinos, especialmente aquele que ocupou Machu Picchu, irmão é aquele que partilha conhecimento e que vive sob o mesmo sob o solo de pachamama (mãe terra/universo/mundo), o que implica em uma disputa/concorrência menor por algo deixado pelos genitores. Apesar das características financeiras serem importantes, focarei nos aspectos éticos dessa relação entre irmãos. Deste modo, o dever de um irmão para com o outro é característica fundamental nessa reflexão, pois como bem nos aponta Volóchinov (2018): “Na palavra se realizam os inúmeros fios ideológicos que penetram todas as áreas da comunicação social” (106). Sob a palavra/título de irmãos, os espanhóis se assentaram em Cusco e logo expandiram a colonização por outras regiões, atravessando montanhas com mais de 5 mil metros de altitude.

Longe de ser óbvio e há que se questionar qualquer toda noção de obviedade na linguagem, é característico da ideologia pressupor sua visão com única ou a maior de todas, o que significa observar no outro e no seu dizer algo do próprio sujeito que observa. No entanto, historicamente, sabe-se que nem os portugueses, no Brasil, nem os espanhóis, em outros locais da América do Sul, foram irmãos nas mesmas formas conceituais que os povos originários imaginavam. Antes de culpar ou julgar a recepção dada pelos povos andinos, por exemplo, cabe lembrar: A consciência apenas pode alojar-se em uma imagem, palavra, gesto significante etc. Fora desse material resta um ato fisiológico puro, não iluminado pela consciência, isto é, não iluminado nem interpretado pelos signos (Volóchinov, 2017, p. 98). Esta colocação do autor russo aponta outro traço mencionado pelo guia durante o percurso por Machu Picchu: além do conceito de irmão, os espanhóis utilizavam roupas e jeito de se locomover que pareciam ser dos deuses na visão inca. Então, quer fossem recebidos como deuses, quer como irmãos, a chegada dos espanhóis foi realizada de maneira menos conflituosas do que em outros lugares na América do Sul, como foi no Brasil.

Ainda que não apenas nisso, o fato que o processo de colonização do povo Inca ter se sustentado no signo ideológico irmandade permite demonstrar a importância da linguagem e o cuidado que deve ocorrer no contato entre povos com cosmogonias diferentes. É importante apontar que ao perderem[2] Machu Picchu para os espanhóis, o povo Inca se refugiou em Vilcabamba, mas, diante da devastação causada pela doença em questão, o rei permitiu que os representantes religiosos espanhóis entrassem em contato com os sobreviventes da última cidade Inca. No entanto, no final, soldados espanhóis acabaram entrando na cidade e assassinando o último rei Inca.

Ao mesmo tempo que falo de um acontecimento histórico do séc. XV, cabe destacar que ainda hoje, em março de 2023, a montanha das 7 cores – um dos lugares turísticos mais famosos do Peru – se encontra fechada em uma de suas vias por conflitos entre povos da região, que lutam entre si por diferentes motivos, dentre eles o respeito a sua cultura e sua linguagem.

Ao mesmo tempo que falo de um acontecimento no Peru, cabe mencionar a expansão da devastação na Amazônia brasileira, o que diminui o afastamento de diferentes povos indígenas do homem branco, de quem hoje descende, em parte, o povo brasileiro.

Deste modo, nota-se que problemas similares ao discutido acima ainda acontecem. A partir de uma perspectiva bakhtiniana, então, não se trata de ser alarmista, mas olhar para o passado é uma forma necessária para se pensar no futuro, pois o processo de interação entre povos se dá a partir de enunciados, que retomam enunciados anteriores e suscitam respostas. Sendo assim, compreender o funcionamento da linguagem em seu contorno ideológico é uma característica fundamental para elaborar políticas públicas atuantes na interação entre povos diferentes, o que vai desde políticas relacionadas à proteção de povos originários afastados da civilização européico-brasileira, até o enfretamento do preconceito linguístico fortemente marcado em zonas de fronteiras com outros países da América do Sul.

Referências:

BENÍTEZ, Danilo Enrique Noreña. DICIONÁRIO QUÉCHUA. Disponível em: https://pt.significadode.org/quechua/ebook/119297.htm. Acesso em: 20 mar. 2024.

GRILLO, S. Marxismo e filosofia da linguagem: uma resposta à ciência da linguagem do século XIX e do início do XX. In: VOLÓCHINOV, V.. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad: notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.

GRILLO, S. Marxismo e filosofia da linguagem: uma resposta à ciência da linguagem do século XIX e do início do XX. In: VOLÓCHINOV, V.. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad: notas e glossário Sheila Grillo e Ekaterina V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2018.

[1] Atualmente a palavra utilizada para amigo é atillcha)

[2] Esse é um tema debatido entre os historiadores, pois diferentes autores apontam que foram doenças como a varíola que dizimaram as pessoas que lá viviam.

0 visualização0 comentário

Comentarios


bottom of page