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O outro da personagem e a personagem do outro: uma reflexão dialógica do homem a partir de François

Bárbara Melissa Santana[1]

Luciane de Paula[2]

“Quando contemplo no todo o homem situado fora e diante de mim, nossos horizontes concretos efetivamente vivenciáveis não coincidem. Porque em qualquer situação ou proximidade que esse outro que contemplo possa estar em relação a mim, sempre verei e saberei algo que ele, da sua posição fora e diante de mim, não pode ver: as partes de seu corpo inacessíveis ao seu próprio olhar – a cabeça, o rosto, e sua expressão -, o mundo atrás dele, toda uma série de objetos e relações que, em função dessa ou daquela relação de reciprocidade entre nós, são acessíveis a mim e inacessíveis a ele” (BAKHTIN, 2011, pg. 21)

Olhamos para um espelho na curiosidade de encontrarmos nele, como superfície milagrosa que nos direciona a nós mesmos, nossa própria imagem e alcançar – embora parcial e unilateralmente – a perspectiva exteriorizada que é contemplada pelo outro. Dentro de nós, encerrados no limiar entre nosso interior e o exterior que nos abre ao mundo, chocamo-nos com o princípio básico necessário para conhecermos a nós e ao nosso outro: o olhar exterior.

O olhar alheio se introduz aos nossos olhos como uma porta que nos faz reconhecer nós mesmos como sujeitos. Para a teoria bakhtiniana, o sujeito é desprovido da capacidade de reconhecer o todo de si, cabendo a ele apenas determinados fragmentos de si mesmo e de sua realidade enquanto o outro é capaz de contemplar todo seu exterior, de um ponto de vista que abrange sua imagem integralmente. Essa perspectiva do outro não se restringe ao aspecto físico de minha realidade, mas a todos os aspectos que definem o eu, que também, em sua natureza, já nasce um outro.

A partir de tais reflexões sobre a constituição do eu e do outro da teoria do Círculo de Bakhtin explorada na obra Estética da Criação Verbal, trazemos à discussão o curta metragem brasileiro Françoise[3], lançado em 2001 sob a direção de Rafael Conde. No curta, a protagonista é uma jovem órfã que vive com o tio e cultiva o hábito de visitar o terminal rodoviário e conversar com desconhecidos.

A cena de introdução da personagem no espaço a revela em uma plataforma de ônibus, solitária, como se aguardasse a chegada de alguém. Entretanto, a menina se aproxima de um desconhecido sentado em um banco próximo e inicia um diálogo com o estranho. O diálogo constitui o ponto crucial da questão aqui explorada: o reconhecimento da personagem (Françoise) pelo estranho como base para o entendimento de si (o eu como sujeito) e sua formação pelo outro.

A primeira pergunta feita pela jovem é “Você conhece Lindóia?”. Ela faz isso enquanto aponta para a placa de identificação do ônibus que estaciona em frente aos dois interlocutores. Essa pergunta inicial sustenta o diálogo dos dois, de modo que o homem pergunte o nome da menina e ela discorra sobre detalhes de sua vida. O fotograma abaixo revela o início da conversa entre as personagens:


figura 1 - barbara

Figura 1 – Cena revela o início do contato entre as personagens na rodoviária


Françoise, aqui, não é um outro concretizado e estável, assim como o homem ao seu lado não é um sujeito pronto e acabado, ouvinte, pronto, não tocado e influenciado pelas palavras de Françoise. Lidamos, primeiramente, com dois sujeitos modificados constantemente por cada acontecimento do contexto que os engloba e por cada reação mínima do outro. Françoise não diz o que diz apenas por dizer. No momento preciso em que se encontra, Françoise profere cada uma de suas palavras em razão de questões exteriores que a levam a assumir um posicionamento dialógico e dizer exatamente o que diz. Assim como não se expressa apenas verbalmente, mas também o seu visual revela seus posicionamentos, como é possível perceber na própria figura 1.

Esse curta revela, de maneira expressiva, o sujeito do diálogo, tal qual explicita Bakhtin. Numa situação de discurso direto, face-a-face, o que se destaca é a identidade por meio da resposta. Podemos ampliar nosso campo de análise para os momentos em que: 1. escrevemos este texto; 2. assistimos ao curta metragem; e, 3. o internauta lê o texto. Esse deslocamento nos demonstra sujeitos em plena ação de resposta e construção de si (autor-criador, leitor/expectador do curta e leitor deste texto).

Ao escrever, nós o fazemos em razão de um despertar trazido pelo curta que é, neste momento, um de nossos outros e assim, cada palavra[1] é uma resposta ao discurso desse vídeo e os discursos que nos abrangem nesse e em outros momentos (anteriores e posteriores), de modo que cada signo (sempre ideológica) é escolhido minuciosamente na expectativa de resposta do outro-leitor, que lerá e conceberá uma resposta ao discurso aqui construído que será no momento da leitura, um de seus outros.

O texto aqui escrito, de certa forma, é um Françoise aos nossos olhos e aos olhos de quem o lê. Ele afirma, mas também, discretamente, questiona, analisa, mas abre caminhos para novas análises. Ele finge falar, mas interiormente, concretiza-se sobre uma rede de discursos que empreendem, entre si, embates e, naturalmente, geram uma resposta aos seus outros. Mesmo a afirmação mais breve e austera causa uma resposta, ainda que não a visualizemos, não a ouçamos, ou seja, aparentemente, seja “monológica”.

Partimos de Françoise aos seus vários outros: do eu que escreve e seu outro (o curta metragem, o outro texto e o outro-leitor) que também modifica o sujeito, conforme ele escreve. O texto, por sua vez, torna-se o outro de quem o lê. Tratamos de sujeitos incompletos. Construídos na relação de alteridade com os outros: discursos/enunciados e sujeitos.

A Françoise, personagem, forma-se a partir dos olhos do homem que a questiona (ouve e responde no momento único da interação que os une), assim como ele também se completa a cada parte mínima do diálogo. Suas respostas, como dissemos, não se limitam ao verbal, pois também suscitam elementos visuais. A resposta aparece também em gestos, olhares, no próprio silêncio, na aparente não-resposta, que, na verdade, constitui-se como resposta. Cada elemento constrói um outro homem, modifica-o naquele tempo e espaço precisos, torna-o um “novo” homem a partir de suas respostas, a cada instante. Os sorrisos, as interjeições e os signosjá proferidos, ainda que sejam os mesmos (estruturalmente, ouse já, mesmo significante e mesmo significado), não são iguais, pois a ideologia muda. Por isso, dizemos que o enunciado não se repete e o sentido é plurivalente, assim como a linguagem é heterogênea e múltipla. As estruturas se repetem, porém não os sentidos, únicos em cada situação (espaço-temporal). Para Bakhtin e o Círculo, a enunciação se apropria de significações excepcionais a cada instante da existência e a particularidade nata de cada enunciado se dá em razão do contexto, do sujeito que muda a cada palavra, a cada gesto, a cada segundo. A referência compõe o discurso. Ao enunciar, o sujeito deixa de ser aquele que era ao pensar em se expressar. Ele se molda nesse movimento de alteridade, em que a cada momento, num local específico, responde ao outro e suas palavras assumem significação diante de si, do outro e da situação comunicacional.

O final do curta[2] surpreende com a entrada do tio de Françoise em cena e a fuga da menina. Conforme as palavras do tio, a menina apresenta uma perturbação psíquica e inventa fatos sobre sua vida. Nesse momento, resgatamos o caráter dialógico da formação do sujeito. O homem vê a imagem que havia construído sobre Françoise descontruída no momento de interação com o tio da menina. Para ele, todo o discurso de Françoise assume uma outra significação em razão das palavras do tio, seu outro-outro. A dialogicidade da linguagem como elemento constituinte do sujeito elabora uma teia em que cada momento social e histórico compõe sentidos por meio das interações que o consolidam. O outro nos infere um legado que só nos pode ser provido por ele (outro), de seu lugar e espaço.

Os valores incutidos na linguagem, em razão do teor ideológico dos discursos que a permeiam, permitem que o sujeito manipule o que diz e assim simule seu outro. A responsividade do sujeito, fato irreversível, não deve ser tomada como uma “verdade”, pois é possível manipular o olhar, o gesto, a palavra. Seja como for, o enunciado sempre será responsivo, mesmo quando ou se os valores expressos simulem valores opostos (via ironia, inversão etc). Françoise produz uma situação de simulacro enunciativo e manipula o olhar do outro ao fazê-lo enxergá-la de determinada maneira, assim como o seu tio o faz ao criar uma outra situação enunciativa, que desconstrói a imagem implementada. Qual é a verdadeira Françoise não nos importa (afinal, o que é a verdade e como captá-la? Filosoficamente, a verdade depende do ponto de vista de quem vê. Ela, como conceito abstrato, “puro”, não existe). Trata-se de máscaras sociais. A visão do homem “desconhecido”, da rodoviária, muda de acordo com os pontos de vista de quem narra. O que nos interessa é exatamente demonstrar que o homem e o mundo se constroem como imagens e são interpretações de um possível real, que se constitui como pontos de vistas (mutáveis, inclusive) distintos, a partir dos sujeitos e seus outros. Françoise semiotisa a heterogeneidade da linguagem, do mundo e do homem (visto a partir de si e seus outros, internos e externos, sujeitos e enunciados).

Do lugar em que o “eu” se posiciona, cabe a ela apenas o que lhe é “visível”. O seu excedente de visão pode ser manipulado[3]. O discurso pode acolher os diversos valores de sujeitos variados e fazer o sujeito acreditar em veridictoriedades construídas imageticamente a partir e por meio de seus outros – fantasiosos ou não. Notamos no curta, no mínimo, duas “Françoises” e ainda assim, é impossível ao telespectador reconhecer qual é a “verdadeira” história sobre a menina. A ambiguidade é a essência temática em torno da qual gira toda a narrativa, com sua forma e estilo peculiares.

O exame das possibilidades de sentido discursivas se engendra nas questões ideológicas do enunciado, do qual somos outros incompletos, em formação, constituídos por outros irrevogáveis, também incompletos. Essa incompletude do homem também é expressa pela e na incompletude da linguagem que, como “organismo vivo”, mais que falar sobre o homem, capta a sua essência: a complexidade que se compõe por continuidades e descontinuidades, estabilidades e instabilidades, contrários e contraditórios dialético-dialógicos. Quem é homem? Outros de si, internos, suas personagens que se constituem como outros em si,  eus-outros e outros-eus, sujeitos de nós, enlaçados em nós.

Referências

BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. 6ª Ed. (tradução feita a partir da edição russa). São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

BRAIT, B. (Org.). Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. 3. ed. Campinas: EDUNICAMP, 2001.

PAULA, L. de. Análise dialógica de discursos verbo-voco-visuais. Projeto trienal. Assis: UNESP, 2014. (Mimio, não publicado)

VOLOCHINOV. “A palavra e suas funções sociais”. A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro e João Editores, 2013.

[1] Professora de Linguística da UNESP FCL Assis e PPGL UNESP FCL Araraquara

[2] Estudante de mestrado na UNESP FCLAR sob a orientação da professora Luciane de Paula

[4] Palavra, aqui, é utilizada por nós em sua acepção ampla, tal qual o faz Volochinov (2013), ou seja, palavra é entendida como mais que signo verbal. Trata-se das três dimensões da linguagens (isto é: a verbivocovisualidade), como estuda Paula (2014), a partir de Pignatari.

[5] A obra possui um total de 21”38’.

[6] Manipulação em seu sentido semiótico, não em seu sentido lato.

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