Tatiele Novais Silva
Neste texto, propomos pensar como o sujeito se enxerga como tal por meio da visão do outro, mediante uma relação dialógica em que as trocas de diferentes perspectivas sobre a descrição física de um sujeito revelam os valores sociais e individuais neste presente, assim como o faz se perceber da maneira como é fisicamente sem o criticismo presente na visão que tem de si mesmo. O sujeito é visto como sócio-histórico e constituído em parte pelo olhar do outro, sobre a constituição do sujeito diz Sobral que
A ênfase no aspecto ativo do sujeito e no caráter relacional de sua constituição como sujeito, bem como na construção “negociada” do sentido, leva Bakhtin a recusar tanto um sujeito infeso à inserção social, sobreposto ao social, como um sujeito submetido ao ambiente sócio-histórico, tanto um sujeito fonte do sentido como um sujeito assujeitado. A proposta é de conceber um sujeito que, sendo um eu para-si, condição de formação da identidade subjetiva, é também um eu para-o-outro, condição de inserção dessa identidade no plano relacional responsável/responsivo, que lhe dá sentido. Só me torno eu entre outros eus. Mas o sujeito, ainda que se defina a partir do outro, ao mesmo tempo o define, é o outro do outro: eis o acabamento constitutivo do ser, tão rico de ressonâncias filosóficas discursivas e outras. (2005 p.22).
Como parte de um grupo social, o sujeito utiliza signos para a comunicação. Ele é imerso aos valores ideológicos pertencentes ao seu grupo. Para pensar a constituição do sujeito e dos valores ideológicos que o integram, abordamos o vídeo da campanha publicitária “Dove Retratos da Real Beleza (Versão Estendida)”[1].
O vídeo da campanha publicitária apresenta um artista forense que faz retratos-falados das mulheres com base na auto-descrição feita pela retratada. Após esse processo, é feito um novo desenho retratando a mulher sob a visão de outra pessoa. O autor-criador não vê as mulheres retratas, seus desenhos são feitos a partir da visão do outro. A noção de sujeito implica pensar o contexto em que se age e o princípio dialógico permite pensar os elementos sociais e históricos que constituem o sujeito como ideológico inserido em uma esfera e em um sistema organizado que influenciam a sua individualidade. Ao final do vídeo, as mulheres encaram os dois desenhos e nota-se o impacto que causam as diferentes representações do sujeito mediante diferentes visões, como podemos ver nos exemplos que seguem.
Fig.1 Diferentes retratos de Kela
Fig.2 Diferentes retratos de Florence
As figuras 1 e 2 são alguns dos desenhos que aparecem no vídeo, de duas das participantes da peça publicitária. As figuras da esquerda caracterizam a representação feita sob a perspectiva das mulheres desenhadas e as da direita, os desenhos feitos a partir da visão de outras pessoas sob as mesmas mulheres. Podemos notar que essas mulheres apresentam, em sua auto-descrição, uma visão crítica em reação à sua aparência. Visão até mesmo distorcida (mais gordas, mais velhas, mais tristes ou amargas. Focam-se em seus “defeitos” mínimos: sardas, pés-de-galinha, rugas, tamanho do nariz, do queixo e das bochechas etc). Ao encararem as diferentes visões de si, elas percebem o quão críticas são em relação à aparência. Esse criticismo pode ser uma resposta aos valores que permeiam a esfera social à qual estão inseridas, à exigência de corpo perfeito imposta à mulher (mais do que ao homem) e o estado psíquico que se altera mediante determinada configuração física, o que revela a gravidade acerca da importância dada ao corpo nas mais diversas sociedades, na contemporaneidade (mas, não só. Afinal, trata-se de um processo histórico).
O vídeo é importante porque suscita muitas questões em torno da composição do sujeito, mediante a sua ralação com outro; e permite compreender como os valores sociais estão intrínsecos à forma como o sujeito se vê. Esses valores afetam a forma como esse sujeito se idealiza, tendo em vista modelos pré-concebidos como “belos” e “perfeitos”, a partir de determinada construção imagética de si e do outro, socialmente constituída, como podemos perceber por meio dos desenhos, nas diferentes visões sobre o físico, que revelam a constituição de uma imagem, por vezes, fictícia e deturpada de si, construída e idealizada no âmbito dos valores ideológicos. Por meio do vídeo é possível perceber o quão a ação de descrever a sua aparência ao outro revela parte do sujeito composto por suas individualidades (sempre dialógicas e responsivas), assim como composto socialmente na relação com o outro, permeado por valores e signos ideológicos.
As reflexões que esse vídeo suscita permitem entender as formas de representação dos valores ideológicos constituintes dos discursos que envolvem a representação física do sujeito mediante uma visão crítica em relação à aparência, influência de padrões e parâmetros sócio-culturais e, principalmente, como afetam a visão que os sujeitos têm de si e do outro.
O sujeito é entendido como incompleto, sendo a relação com a alteridade que lhe dá existência. As duas representações do sujeito por meio do desenho revelam sua visão sobre si e a visão do outro sobre ele. A compreensão do sujeito se dá em ambos os retratos que, mesmo quando diferem a forma física, refletem e refratam a ideologia presente nos sujeitos envolvidos e podemos perceber nitidamente por meio do vídeo o quanto os valores aparentemente íntimos dos sujeitos, sua autoimagem, são também sócio-culturais.
O outro infere acabamentos múltiplos no espaço e no tempo ao sujeito. As relações entre sujeitos e como eles interagem e se re-velam mutuamente permite compreender os valores presentes não apenas no sujeito, mas também o que está incutido socialmente nele, incorporado inconscientemente. O que fica é: o quanto somos “contaminados” pelos valores sociais e isso nos constitui, inclusive, causando doenças de distorção total de imagens (o que é muito claro em processos de anorexia e bulimia, dada a ditadura da magreza, vista como saúde e beleza).
Referências
BAKHTIN, M. M. (VOLOSHINOV). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
GERALDI, J.W. “Sobre a questão do sujeito”. PAULA, L. de; STAFUZZA, G. (Orgs.). “Círculo de Bakhtin: teoria inclassificável”. Volume 1. Série Bakhtin – Inclassificável. Campinas: Mercado de Letras, 2010, p.279-292.
SOBRAL, A. “Ato/atividade e evento”. In BRAIT, B. (org.). Bakhtin – conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005, p.11-36.
Site da campanha publicitária –http://retratosdarealbeleza.dove.com.br/
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