Ana Paula Lopes Cardoso
Desde sempre, vivemos numa sociedade que, constantemente, nos impôs modelos a serem seguidos, nas mais diversas esferas como exemplos de “perfeição contemporânea” que vêm com a intenção de formatar o pensamento e minimizar a capacidade crítica da sociedade, de modo a fazer dela uma grande massa “bela”, do ponto de vista da homogeneização social, idealista, castradora e machista – basta nos atentarmos ao “Mito da Beleza”, de Naomi Wolf. As indústrias da moda e da beleza nunca estiveram tão em alta e nunca se disseram tão democráticas como se dizem agora: “a moda para todos”, “a beleza de todos, em qualquer idade”! Mas bastam breves passeios pelos outdoors da cidade, pelas páginas das revistas ou mesmo alguns minutos em frente à televisão para notarmos que a principal intenção das marcas, por meio da mídia, é a difusão de pensamentos hegemônicos ditatoriais: o massacre da ideologia dominante sobre o cotidiano. Tomemos, como exemplos, duas peças publicitárias televisivas, sendo uma de Chronos (Natura Chronos 70+) e uma de Renew (Avon Renew Platinum), linhas de duas grandes marcas de cosméticos do patamar nacional atual. Ambas são marcas de tradição, consagradas no Brasil e com um público consumidor já bem definido. Suas peças publicitárias nos revelam, no entanto, certa “fragilidade” por parte das marcas: a necessidade de conquistar (no sentido de “pescar”, “capturar”, como numa disputa) seus clientes, por meio de táticas que, de certa forma, não se focam tanto na venda dos produtos em si, mas sim na imposição de um discurso valorativo de empatia, seja com o politicamente correto (Natura) seja com a fama (Avon). Segundo a concepção bakhtiniana, o discurso é carregado de valores do sujeito. Por meio da ideologia, ele se afirma e se concretiza no e por meio do signo. Dessa forma, as marcas escolhem qual é a imagem que pretendem passar ao seu público, a imagem que, dadas pesquisas mercadológicas extremamente bem realizadas, convencerá e, mais que isso, persuadirá o consumidor, fazendo-o crer no discurso das empresas e, com isso, via peça publicitária, as marcas atingem seus objetivos: vender. Com os objetivos “declarados” (a conquista de clientes e, consequentemente, as possíveis vendas), Natura e Avon exaltam e veiculam os ideais nos quais esperam que seus públicos, cada vez maiores, acreditem: uma, a Natura, volta-se a uma suposta postura de empresa preocupada com o meio ambiente, com as diferenças étnicas, com a diversidade física do povo brasileiro, com o respeito à diversidade e às fases da vida. A peça publicitária televisiva da Natura aqui mencionada traz à cena diversas mulheres, de idades variadas (as quais são, inclusive, reveladas, juntamente com os seus nomes), com diferentes estilos de vida, modos de se vestir e de se comportar, além das diferentes etnias contempladas: observam-se, no comercial, mulheres claras, loiras, morenas, de olhos claros e uma negra (apenas uma). Todas aparecem em momentos de descontração, muitas vezes, ao ar livre, compartilhando uma suposta alegria por serem como são, mulheres maduras e bonitas em suas particularidades. Além disso, essa peça publicitária televisiva de Chronos, que lança um novo antissinais na linha, o 70+ (indicado para mulheres acima de setenta anos), apresenta um jogo de sentidos quando a voz do comercial (que, por acaso, é masculina) diz “A história da mulher de setenta…”. Nesse momento, pode-se fazer uma ligação não apenas com a mulher de setenta anos, mas também com a mulher dos anos setenta, que desenvolveu um papel importante na economia e, consequentemente, na história. A outra, da Avon, explicita a voz de uma empresa que quer ser vista como aquela que “veste”, supostamente, valor “profissional” de “sucesso” à mulher e pretende voltar-se única e exclusivamente à sua “fama”, mas o que parece ser “descolado”, é machista e pessoal. Na peça publicitária televisiva em questão, a marca apresenta a atriz britânica Jacqueline Bisset, que encena o papel de mulher poderosa e sensual, mesmo acima dos sessenta anos, como modelo a ser seguido. Ela aparece em uma espécie de estúdio de fotografia/filmagem e, maquiada e vestida “para matar”, encara a telespectadora, fazendo poses sensuais, embalada por uma música agitada. Logo no início, a voz que é, aparentemente, dela diz: “Eu não minto a minha idade. A minha pele, sim”. Em seguida, a apresentação do produto e de seus benefícios é realizada (diferentemente do que ocorre em “Natura Chronos 70+”, em que o produto só é apresentado ao final da peça). Pela breve descrição acima, pode-se notar que, por um lado, o comercial da Natura tem a intenção de representar uma empresa “limpa”, “responsável” socialmente, que aceita os diferentes estilos e modos de ser e que, inclusive, apoia as diferenças, até como se insistisse para o consumidor assumir sua personalidade. O fato de quase não mencionar o produto, a não ser no final da peça, quando a voz masculina (que soa, aqui, como o reconhecimento da importância da mulher na sociedade e também como o valor atribuído a ela pelo homem, quem a julga – uma duplicidade de significações que nos leva a pensar o papel na mulher numa sociedade patriarcal) entoa “Natura Chronos 70+. Agora, tem um para a sua história.”, nos remete ao fato de a empresa vender apenas uma ideologia, não necessariamente em que acredita, mas com a qual potencializa conquistar clientes e vendas, “deixando de lado” o produto que é porta-voz dessa ideologia de empresa “responsável”, “respeitosa”, “limpa” e “honesta”. Pretexto para atingir um público cada vez maior e mais amplo. Por outro lado, o comercial da Avon nos remete a um discurso capitalista, hegemônico, preconceituoso com “cara” de feminista, mas extremamente machista, pois, de certa forma, cobra da mulher que ela seja como a imagem da atriz apresentada: uma mulher poderosa e segura de si, capaz de alcançar seus objetivos e de ter quem quiser aos seus pés. Soa como uma empresa mais prática, que sabe o que quer: vender um produto que cuide da pele da consumidora e que a faça se sentir segura e confiante, o que se confirma pelo slogan entoado ao fim, pela mesma voz que representa Jacqueline Bisset: “Você quer? Agora você pode!” e, depois, pela voz feminina que narra o comercial: “Fale com uma revendedora Avon e peça Renew Platinum!”. Se Natura e Avon fazem escolhas tão distintas nas peças publicitárias televisivas em questão, se vestem ideologias tão opostas, fica claro que pretendem atingir diferentes públicos e, consequentemente, diferentes camadas da sociedade. Dessa forma, suas escolhas (de vocabulário, de imagens, de pessoas, de música, de informações veiculadas, etc.) refletem e refratam ideologias que acreditam serem dos públicos que pretendem atingir por empatia. As empresas são sujeitos discursivos responsáveis por suas ações (concretizadas por meio da linguagem). Sujeitos profusores de ideologias capitais com “maquiadas” de “verdades”. Mais do que isso, sujeitos que incutem valores e homogeneízam o seu público, assolando as diferenças como se as respeitassem (Natura) e impondo um modelo de sucesso canônico (Avon). Com isso, reproduzem valores que continuam vendo a mulher como objeto. Sujeitos que ecoam outros e vão ser ecoados por outros, constituindo, assim, um longo processo de construção de sentidos, de atuação e colocação no mundo. Aqui, Natura e Avon interagem e, com isso, criam seus lugares no mundo e se responsabilizam por seus atos-ações, tanto quanto nós, ao consumirmos e, com isso, assumirmos nossos valores, em empatia ou não com o que nos é “imposto”. Será mesmo que só há uma beleza? E que as belezas precisam ser “retocadas”? Será mesmo que o “cuidado” de si, com a pele, o tempo etc é amar-se? Ou será que é falta de amor-próprio? Assumir nossas heterogeneidades e belezas também passou a ser filão vendável. E como vende! Resta-nos refletir sobre como esses valores nos constituem, bem como em que sentido nós os garantimos, por reproduzi-los em nosso cotidiano.
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