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Liliths e Evas: breve olhar bakhtiniano 

Rafaela dos Santos Batista

Desde os primórdios, homens e mulheres não ocupam o mesmo lugar social. As relações humanas são hierárquicas e fundamentadas em valores de interseccionalidade entre gênero, raça e classe (DAVIS, 2016), por isso, o funcionamento das esferas da vida exaltam o sexo masculino, pois o homem (principalmente o branco e economicamente privilegiado) é o superior que necessita do processo correlato da mulher inferior (SAFFIOTI, 1984, p. 29).

Ainda hoje, mulheres são subjugadas como auxiliares de homens, os papéis impostos devido seu corpo biologicamente capaz de reproduzir à luz de uma naturalização resulta em funções sociais que toda mulher deve seguir se quiser ser adorada: primeiro deve ser boa filha e irmã, depois uma esposa maravilhosa e uma mãe exemplar, tudo isso adornada de características como a bondade, fidelidade, doçura e delicadeza.

Mulheres contemporâneas são tratadas com valores de séculos atrás. Um grande exemplo está no atual governo nas mãos de Bolsonaro, famoso pelas suas considerações misóginas, homofóbicas e racistas, como no caso que ofende a deputada Maria do Rosário ao dizer que “Ela é muito feia. Eu não sou estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar porque ela não merece”1.

Dizer que desde sempre acontece essa inferiorização não é exagero, uma das grandes responsáveis pelo sexo feminino ser colocado como secundário na existência social é os dogmas que a igreja impõe ao cristalizar a naturalização da mulher reprodutora que deve ser mãe, e por consequência, destinada ao privado. Vale lembrar que a incumbência materna da mulher advém de uma cópula de estrita reprodução, o sexo nunca deve ser prazer, essencialmente à mulher.

A função de submissão e vassalagem ao homem foi construída pelo discurso religioso baseado no livro do Gênese, no Antigo Testamento, que, na versão judaico-cristã, omite a criação de Lilith e a substitui por Eva.

O demônio noturno, assassina de recém-nascidos, sedutora e prostituta Lilith foi criada como a primeira mulher de Adão, nascida do pó e insuflada pelo sopro divino com a missão de fundar a espécie humana. No entanto, foi expulsa do paraíso ao se opor a permanecer por baixo do homem no ato sexual. Pela luta de igualdade entre Adão e ela, Lilith dialoga com todas as mulheres que reconhecem sua sexualidade e autoridade feminina. No patriarcado toda mulher se torna demônio se for contra os ideais ideológicos, tal qual Lilith fora pintada e até apagada da história bíblica.

O lugar de Lilith fora dado a Eva, mulher feita da costela de Adão (e não mais do mesmo pó, assim, não mais igual), para responder ao papel submisso e dócil do feminino. Mesmo sendo criada para o posto de auxiliar, Eva foi vista com espírito transgressor onde tudo o que é ruim no mundo, só existe por sua culpa.

O fato de toda mulher ser relacionada ao mal e ao diabo tem ligação com Eva, seduzida e levada pela serpente maligna a pecar. Relacionada a vergonha e a culpa de afastar o homem ingênuo e excelente de Deus, foi entendida como regida pela sexualidade, cobiça e pelo mal. Eva está em toda mulher pensante.

Designadas sempre ao papel submisso, basta uma discordância ao que diz o homem que a mulher será julgada. Na bíblia ainda se tem a perfeita Maria, mãe virgem que concebe Jesus Cristo. Lilith foi subjugada por querer seu lugar de direito, Eva foi malvista por cair “em tentação”, e ainda recebe o título de:

[…] a portadora do signo perverso da palavra, já que tudo indica que a serpente falava e que a linguagem resultou de uma conspiração entre o réptil com cabeça e língua masculinas e a sedutora criada para ser ajudante e serva dos desígnios de Deus por meio do homem (ROBLES, 2019, p. 41).

A palavra, semente ideológica usada para domínio hegemônico também foi criada por Eva, mesmo que seu uso superestrutural seja feito pelos homens poderosos. O Círculo de Bakhtin, ao estudar e entender a linguagem como meio de mudanças sociais (VOLÓCHINOV, 2017), compreende a palavra como ideológica por ser composta de signos ideológicos que advém da interação social entre sujeitos.

A ideologia penetra nas esferas onde há meios de comunicação, sendo arena para embate de propensões sociais, dessa forma, a comunicação dialógica é composta por forças contrárias entre discursos e sujeitos (enunciativos, que para a teoria bakhtiniana é no mínimo dois: eu e outro).

Toda esfera é composta de vozes sociais alteritárias que semiotizam ideologias dominantes e também as tidas como inferiores. Numa sociedade patriarcal, a linguagem é o meio para a ideologia em voga propagar-se e permanecer em força centrípeta.

Ao saber que a igreja impõe valores até hoje seguidos, é claro que faz parte do jogo ideológico onde superestruturalmente impute suas axiologias na infraestrutura, tudo isso por meio da palavra (que julga ser criada por Eva, sendo então, ruim).

As forças contrárias e contraditórias do discurso preveem uma ideologia em primazia, a igreja transforma e quer suas premissas como verdades incontestáveis, com isso, articula as histórias bíblicas para que a mulher seja sempre perversa e má.

O temor a Deus é colocado às mulheres fiéis ao mostrar que Eva pecou e foi expulsa, mas também que Lilith abusou dos seus privilégios e foi castigada. A história omitida da bíblia tem peso, porque escondem a mulher desafiadora ao tentarem fazer que nenhuma serva da igreja seja como Lilith. Ao colocar que o sexo feminino é culpado pelas coisas ruins do mundo, as fiéis são obrigadas a seguir o ideal de Maria, ser mãe (virgem, não ter prazer no ato sexual) e uma boa esposa.

A palavra que é ideológica por excelência (VOLÓCHINOV, 2017), é o meio de propagação do discurso religioso que reifica a mulher, mas, a ideologia não nasce no sujeito e sim no social (MEDVIEDÉV, 2012). Valores vêm das esferas e são postos no sujeito que entre interações recebem vozes sociais diversas que o formam enquanto ser evento único (BAKHTIN, 2010).

Das vozes sociais fundantes do sujeito, a singularidade surge e este é compelido a se posicionar no mundo, inclinando-se a um valor social. Há mulheres que recebem a ideologia patriarcal-religiosa sem se opor, são seguidoras fiéis de uma axiologia que as trata como um corpo reprodutor e sem importância.

A sociedade contemporânea condena Liliths e Evas, mas ama Marias e as colocam como ideal: a mulher que não é divina acaba por ser rechaçada. A relevância de se pensar o corpo da mulher em sociedade ainda não é uma ideia retrógada, pois há homens (e mulheres) que querem o feminino como segundo sexo (BEAUVOIR, 2009).

A liberdade feminina é uma busca, mulheres devem ser livres de rótulos e devem poder alcançar qualquer espaço, não basta parar ao conseguir alguns direitos sociais, deve-se ansiar a queda do que nos derruba: o eco patriarcal.

Referências

BAKHTIN. M. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João, 2010.  BEAUVOIR, S. 1908-1986. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.  DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.  MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, 2012.  ROBLES, Martha. Mulheres, mitos e deusas: o feminino através dos tempos. São Paulo: Editora Aleph, 2019.  SAFFIOTI, H. O poder do macho. São Paulo: Editora Moderna, 1987.  VOLOCHÍNOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Rio de Janeiro: 34, 2017. 

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