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Jorro de voz pelo blog e não quero estar só

Luciane de Paula

“Solto a voz nas estradas, já não quero parar Meu caminho é de ferro, como posso sonhar Sonho feito de brisa, vento ver (g)terminar (…) Já não sonho, hoje faço, com meu braço, o meu viver” (“Travessia” de e na voz solta de Milton Nascimento)

Galin Tihanov tem um livro sobre Bakhtin e Lukács, chamado As lições que Bakhtin deixou para nós, onde diz que a grande lição que Bakhtin nos deixou foi a reflexão sobre a concepção de diálogo. Diálogo do ponto de vista filosófico. Não um filosófico abstrato, mas um filosófico concreto. Afinal, diálogo é o ato (portanto, o /fazer/) concreto ético, responsivo e responsável acerca de dado conteúdo. Como sabemos que não é possível ato qualquer sem linguagem, trata-se o diálogo de um fazer enunciativo, qualquer que seja ele (verbal, não-verbal ou sincrético). Linguagem é o que distingue o homem, fisiologicamente, de outros animais i-racionais (assim mesmo: não-racionais). Mas, como também escreveu Morin em textos como “Ciência com consciência” e “Amor Poesia Sabedoria”, o homem não pode ser chamado de “homo sapiens” porque essa palavra “sapiens” significa, no mínimo, razão; e, no máximo sabedoria. E o homem também é composto por sua parcela “demens”. Isso mesmo, sua porção “demente”. Demência, em dicotomia à racionalidade, é o élan passional que nos move. Paixão, semioticamente, no sentido de alteração de estado de ânimo, como já explanou Aristóteles em sua “Arte Retórica” – o pathos, para alguns, doentio. Mas, aqui, não me refiro à passionalidade como patológica ou demente e sim à passionalidade patêmica, do sujeito que re-age, às vezes, racionalmente (de maneira retórica, seja mais convincente ou mais persuasiva); às vezes, de maneira demente (tomado por algum tipo de paixão – raiva, inconformismo, inveja, indignação, passividade, medo, amor etc). Seja como for, há ato. Ato de linguagem. Ato-ação. E como essa atuação se realiza? Por meio de enunciados concretos, de forma dialógica. Diálogo, como nos explica Bakhtin, não significa concordância e nada tem de passividade. Diálogo é embate. Por isso, ele diz que o discurso é “a arena onde se digladiam as vozes sociais”. Digladiar de ideias e vozes heterogêneas, sem hierarquia. Polifonia. Dialogar significa falar o que se pensa e escutar o que o outro tem a dizer. Isso é resposta. E todo discurso é prenhe de resposta, ele já se compõe como resposta – seja a algo passado ou futuro, pois prevê reações. Escutar é tão ou mais importante que falar, pois é também um ato. Refiro-me à “escuta ativa” sobre a qual reflete Ponzio. Dialogar não é simples porque vivemos num mundo hierárquico, cheio de jogos de poder e interesses, tanto pessoais quanto coletivos. Mas, dialogar implica dizer e escutar o outro. Escutar com respeito ético, sem desnivelamento social. Escutar discordando do outro, mas escutar. Escutar e não ouvir. Barthes nos diz que ouvir, ouvimos indistintamente qualquer ruído. Escutar requer atenção. Ouvir significa deixar o outro falar enquanto penso em qualquer outra coisa. Não resolve. Menciono a importância de escutar. Isto é, deixar o outro falar o que pensa mesmo discordando dele, mas aberto a um outro ponto de vista. Isso não significa escutar pronto pra guerra, mas sim aberto à reflexão. Mudar de postura e deslocar-se, num exercício exotópico, ao se colocar no lugar do outro, sem deixar de ser “eu” mesmo. Isso não significa ser “vaquinha de presépio”, mas se dar a oportunidade de captar algo que passou, enxergar de outro ponto de vista. E, se achar, após refletir, que o ponto de vista do outro está equivocado, continuar com o seu. Fazer-se escutar. Hora de fala. Dialogar não como “emissor” de uma verdade absoluta inexistente ou como um “receptor” passivo e sem voz, tal qual prevê Jakobson. Não. Diálogo como concebe Bakhtin e o Círculo, como embate. Isso pede, no mínimo, tempo e, no máximo, matur-idade. Dialogar não é impor ao outro a sua visão, mas colocar-se da mesma maneira que pede que se ouça o ponto de vista do outro. Ninguém fala/faz o que quer sem ouvir ou consequências. Seja o ato que for. Não se dialoga quando se impõe. Seja o lado que for. Não se dialoga quando se age nas sombras, às escondidas, por conchavos, abuso de poder e sem sequer chamar o outro para lhe dizer, face a face, o que se pensa; nem se está disposto a escutar o que o outro pensa. Podemos dizer e escutar tudo, desde que saibamos como conduzir, como nos conduzir. Ser “racional” é saber que num determinado espaço-tempo é possível dialogar sem ofensas e todos os pontos de vista serem postos num mesmo nível; sair daquele espaço-tempo e não tornar os pontos de vista pessoalistas, pois se assim ocorrer, o ato não é ético e a toda ação, uma re-ação aparece como consequência de um ato inicial. Diálogo como embate se refere a diálogo de ideias e posturas. Com deveres e direitos. Com responsabilidade e responsividade. Maduramente, feito gente grande, melhor, feito gente pequena. As crianças dialogam muito melhor que nós. Aprendamos com elas e com os bichos, barrosianamente e sem vaidades. Sem álibi de medos e choros, fragilidades inexistentes quando pensamos em atos (delinquentes) institucionalizados e protegidos por leis (que são também instrumentos de poder, já dizia Foucault), a fim de se fortalecer. Repito: imposição, de qualquer tipo, é violência, perda de razão, demência – no sentido doentio do vocábulo. Por que não sermos “demens” para criar/construir algo melhor, mais interessante? Ceder em determinados aspectos, bater o pé em outros. Sim porque é a demência, segundo Morin, que constitui a poesia da vida e nos tira de sua “prosa ordinária”. Mas, ela também pode ser barbárie. Basta saber o que queremos. De novo, como conduzir. A forma e o direcionamento do conteúdo é fatal. É fácil nomear o outro, instiga-lo, apontar o dedo indicador e, depois, correr para trás da asa e da barra da saia de sujeitos mais poderosos chorando como vítima. O que me assusta é o “adulto” dessa relação tomar partido de uma das crianças sendo mais criança que elas. Sem ouvir os dois pontos de vista. E, injustamente, colocar um dos dois de castigo. Como já mencionei: as crianças sabem dialogar muito melhor que nós. Elas não mentem, não fingem, não escondem. Elas jogam aberto e limpo. Polêmica e pacificamente. Jamais passivamente, a não ser que assim sejam adestradas (porque abuso de poder de adultos por meio de instrumentos amedrontadores – bater, ameaçar, colocar de castigo etc – não é educação). Quando nos referimos à educação, vemos institucionalizada, nas escolas, de todos os níveis, uma lógica que atravessa os mais variados discursos e as mais variadas relações, em diversas esferas. É essa a lógica que queremos re-produzir? É a ela que respondemos. E mesmo quando pensamos que não queremos nos meter nisso, essa já é uma postura. Indignação, seja qual for, de qualquer tipo, sem noção do que se faz, sem horizonte e sem perspectiva, sem organização e sem diálogo “morre na praia”. Temos de considerar que, mesmo dentro de um determinado grupo, há posturas distintas, visões heterogêneas acerca do mesmo objeto, que pode ser visto como um prisma. Lidar com isso não é simples. Mas necessário. Porque a vida é assim. Compõe como arena, logo, pede, melhor, exige luta interminável, “full time”. Mas, as lutas podem ocorrer de maneira festiva. Não precisamos fazer de lutas diárias “cavalos de batalha”. Aliás, numa das batalhas mais conhecidas da história, quando apareceu um cavalo houve traição não-ética (que é diferente de anti-ética). Só para refletir um pouco, instigar respostas e soltar de vozes e sonhos, com braços não-armados (e também armados, se preciso for), feito brisa a germinar com o vento, venho espalhar diálogo em “Travessia”, embalado por Milton Nascimento e tantas outras vozes, a partir dessa resposta a um texto que não vem ao caso – são tantas as situações cotidianas! Reflexão alavancada pela voz do outro que me constitui e entrou em mim como escuta, suscitando-me resposta. Minha fala. Minha voz. Como o convite sugere, soltei a minha voz. Espero que, de alguma forma, ela ecoe. Não. Não gosto de ecos. Eles sugerem repetições e jamais a enunciação se repete. Ela é única. Irrepetível. Então, espero que ela re-verb-ere, afinal, como diz a letra de uma outra canção entoada por Milton Nascimento:

“Há canções e há momentos Eu não sei como explicar Em que a voz é um instrumento Que eu não posso controlar Ela vai ao infinito Ela amarra (a) todos nós” (“Canções e Momentos”)

Cadê sua voz?

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