Ana Carolina Siani
De acordo com Woortmann (2013), a comida e os ingredientes envolvidos em sua preparação “falam”, e por sua dimensão simbólico-ritual, constituem uma determinada linguagem. É a partir dessa compreensão que no presente texto, temos como intuito construir uma breve reflexão acerca do enunciado fílmico Estômago (2007), com foco na representação da comida e da prática da culinária enquanto potencial forma de linguagem e “médium” entre sujeitos (VOLÓCHINOV, 2017, p. 96), o qual semiotiza relações hierárquicas evidenciadas pela jornada de seu protagonista Raimundo Nonato.
Lançado em 2007, a trama de Estomâgo segue o narrador-personagem Nonato em sua chegada como migrante nordestino em São Paulo. A príncipio, chamamos atenção para o título do filme por sua referência ao órgão digestivo que, como palavra-signo que dá nome à narrativa, materializa a apreensão e prática da gastronomia por Nonato, revelando determinadas relações de poder entre os sujeitos.
Ao materializar as transformações vividas pelo sujeito protagonista, o qual tem a relação com seus outros mediada pela gastronomia, a narrativa fílmica se dá por movimentações entre distintos tempos e espaços: a chegada de Nonato a São Paulo e seu trabalho como cozinheiro no boteco de Zulmiro em troca de casa e comida, e posteriormente como ajudante na cozinha do restaurante Boccaccio de Giovanni, e sua chegada na peninteciária em uma cela que passa a dividir com outros presos. Nesses distintos momentos, Nonato vai constituindo-se como sujeito por seu encontro e embate com a alteridade, com a palavra alheia (BAKHTIN, 2011) materializada pela prática e conhecimento culinários que aprende com Zulmiro e Giovanni (com o primeiro práticas de uma cozinha cotidiana e com o segundo uma gastronomia considerada como mais sofisticada, o que também nos revela as distinções valorativas que constituem a culinária como prática que semiotiza a própria ascenção socioecômica do protagonista). De posse desse conhecimento culinário e por sua aptidão na cozinha, no contexto da penitenciária, Nonato consegue a proteção e aprovação de Bujiú, preso que detém o maior poder na hierarquia da cela. Assim, a culinária exerce a mediação entre o protoganista e as outras personagens, perpassando até mesmo a sua relação afetivo-amorosa com a prostituta Íria, relação iniciada no boteco de Zulmiro.
Como atividade imbuída de valor, o ato de cozinhar, bem como a comida, opera como signos que constituem as relações entre sujeitos na narrativa de Estomâgo (2007).
Nonato circula nas hierarquias e ascende socialmente em distintos momentos nos quais diferentes estruturas de poder são configuradas (relação de classe entre patrão e empregado, a xenofobia na relação entre o migrante nordestino pobre e as personagens de São Paulo, relações de gênero entre homem e mulher e relações de poder entre presos na cela).
Em se tratando de sua materialidade sincrética, ao tomarmos o filme como concretizado pela narrativa descrita, podemos nos guiar por uma concepção tridimensional da linguagem e a compreensão do enunciado como um todo de sentido, o que nos permite analisar o modo pelo qual a atividade culinária é apresentada em Estomâgo (2007) refletindo e refratando as distintas movimentações hierárquicas da personagem-sujeito Nonato.
A partir da concepção dialógica da linguagem como depreendida pela perspectiva teórico-metodológica do Círculo de Bakhtin, com base em Paula e Serni (2017) e Paula e Luciano (2020), bem como em outros estudos em desenvolvimento por Paula e pelo Grupo de Estudos Discursivos (GED), entendemos a linguagem como verbivocovisual.
Segundo Paula e Serni (2017), a noção de verbivocovisualidade refere-se “[…] ao trabalho, de forma integrada, das dimensões sonora, visual e o(s) sentido(s) das palavras. O enunciado verbivocovisual é considerado em sua potencialidade valorativa” (PAULA; SERNI, 2017, p. 179-180). A partir dessa compreensão, consideramos a verbivocovisualidade aqui em referência à interrelação das dimensões vocal, visual e verbal da linguagem como materializada no filme Estomâgo (2007); uma vez que tal como desenvolvido por Paula e Luciano (2020) com base na proposta dialógica de linguagem do Círculo de Bakhtin, entendemos a palavra “[…] de forma alargada, ou seja, tridimensionalmente, uma vez que ela se articula e realiza na interrelação das dimensões verbal (semântica), vocal (sonora) e visual (imagética), e que a verbivocovisualidade constitui a linguagem em qualquer materialidade enunciada, com maior ou menor vigor, como potencialidade a ser explorada, a depender do projeto arquitetônico autoral e genérico realizado” (PAULA; LUCIANO, 2020, p. 708). No caso do enunciado fílmico analisado, podemos considerar o trabalho integrado das três dimensões como concretizado pelas cenas em que Nonato cozinha e que a partir da interrelação entre os elementos verbais, visuais e vocais (sonoros/musicais) constituintes do todo enunciativo expressa determinadas axiologias relacionadas a ascenção e contraposições sociais das hierarquias.
A sequência cênica destacada abaixo (Figuras 1) se dá por um enquadramento de câmera que foca os movimentos de Nonato na primeira vez em que prepara pastéis no boteco seguindo as instruções de Zulmiro. A ambientação do bar caracterizado como um espaço sujo com ratos e baratas, panelas velhas e óleo sujo contrapõe-se ao ato de cozinhar retratado por movimentos de uma câmera mais lenta que segue as mãos (com unhas sujas) de Nonato embalado por uma trilha sonora instrumental mais lenta que, conforme a preparação dos pastéis avança, passa a ser acompanhada de um coro com vozes suaves. Considerada a potencialidade axiológica da interrelação e mútua constituição das três dimensões da linguagem, o ato de cozinhar ganha um tom sublime e divino, e reflete e refrata sentidos de uma certa elevação.
Esse sentido de elevação refletido e refratado pelo domínio da prática culinária a partir da qual Nonato constitui-se e modifica-se enquanto sujeito, é perpassado por relações hierárquicas reveladas pela/na configuração tridimensional do enunciado fílmico que também se apoia em elementos como a apresentação dos créditos da produção. Na sequência cênica em que Nonato cozinha (Figura 1), os créditos da produção surgem com uma tipografia mais reluzente (em néon) e composta por letras cursivas. O uso dessa tipografia se pensada na interrelação com o todo enunciativo da sequência cênica em que Nonato cozinha produz um deslocamento em relação aos minutos iniciais do filme, os quais apresentam uma outra parte dos créditos em uma caligrafia mais rudimentar. Essa contraposição pode ser depreendida na sequência cênica destacada abaixo (Figura 2) situacionalizada pela chegada de Nonato a São Paulo, momento que anda a esmo pela cidade antes de encontrar o bar de Zulmiro:
Por seu caráter sígnico, a prática culinária como refletida e refratada por Estomâgo (2007) expressa relações hierárquicas entre as personagens. Segundo Woortmann (2013), “nas mais diferentes sociedades, os alimentos são não apenas comidos, mas também pensados; quer dizer, a comida possui um significado simbólico – ela expressa algo mais que os nutrientes que a compõem” (WOORTMANN, 2013, p. 6). Ainda segundo a autora, podemos considerar diferentes movimentos de atribuição de significados àquilo que se come, o quanto se come e onde se come, bem como também ao próprio ato de comer. Esses significados modificam-se de acordo com a classe social, grupo, religião, região geográfica, tempo, espaço, etc. Assim, as atividades de cozinhar e comer mobilizam linguagens dinâmicas, sendo que a comida “fala” da relação entre grupos humanos.
Esse movimento de atribuição de sentidos à comida e aos alimentos constitui a narrativa de Estomâgo (2007) e materializa-se no aprendizado de Nonato acerca de uma culinária considerada como mais sofisticada com Giovanni. Nesse sentido, chamamos atenção para a cena em que ambas as personagens encontram-se em um açougue olhando peças de carne, contexto em que o dono do restaurante ressalta a hiper valorização do filé mignon: “Este aqui é o filé mignon, é o que há de melhor na carne. É que nem na mulher a bunda” (ESTOMÂGO, 2007, 01:05:34 – 01:05:41). No enunciado de Giovanni, o filé mignon opera como signo que é equiparado a uma parte do corpo de uma mulher, o que reflete e refrata além da distinção valorativa que sustenta relações de classe, também nos revela relações de gênero, do que também se depreende uma objetificação da mulher.
Como defendido por Murta, Souza e Carrieri (2010), as preferências alimentares estão alicerçadas em um sistema social, “[…] variam de acordo com as representações sociais do que é comestível, combinável, saudável, requintado, do que está na moda, ou é próprio para certa estação do ano, ou etapa da vida” (MURTA; SOUZA; CARRIERI, 2010, p. 43). Ainda segundo os autores, o que comemos, quem cozinha e como cozinha expressa relações de dominação como prática que está embuída de valores.
Ainda que se configurem como produtos de consumo, por uma perspectiva dialógica como a possibilitada pelos escritos do Círculo de Bakhtin, a comida e os alimentos podem ser considerados como produtos ideológicos: “Tudo o que é ideológico possui uma significação: ele representa e substitui algo encontrado fora dele, ou seja, ele é um signo (VOLÓCHINOV, 2017, p. 91, destaques do autor). Como produto de consumo criado, trabalhado e conscientizado pelos sujeitos socialmente organizados, a comida converte-se em signo ideológico quando a ela são fixados determinados valores. Segundo Woortmann (2013), para que se torne comida (seja considerada comestível, o que também compreende uma distinção valorativa entre diferentes grupos humanos), os alimentos sofrem uma transformação, o que implica a sua passagem do plano da natureza para o da cultura.
Assim como desenvolve Volóchinov (2017), a comida enquanto signo surge no seio do processo de interação e comunicação social. E como signo, a comida e a culinária também revela a luta de classes, comportando sempre duas faces. A plurivalência do signo ideológico e o embate de valores que ele expressa também são evidenciados pela comida como representada pela narrativa de Estomâgo (2007). Aqui novamente retomamos a cena em que Nonato e Giovanni avaliam os cortes de carne no açougue. Neste contexto, em que uma “mesma” peça de carne é dividida valorativamente em vários cortes, Giovanni ressalta a proximidade entre a localização do “coxão duro” e a da “picanha”, configuração hierárquica que inscreve a segunda como alimento mais valorizado e que portanto custará mais caro.
Assim, podemos conceber a culinária como ato de linguagem que dá forma, concretiza e semiotiza determinados valores históricos, sociais e culturais, a partir da qual a comida impõe-se como parte da realidade socioideológica que circunda o sujeito:
As concepções de mundo, as crenças e mesmo os instáveis estados de espírito ideológicos também não existem no interior, nas cabeças, nas “almas” das pessoas. Eles tornam-se realidade ideológica somente quando realizados nas palavras, nas ações, na roupa, nas maneiras, nas organizações das pessoas e objetos, em uma palavra, em algum material em forma de um signo determinado. Por meio desse material, eles tornam-se parte da realidade que circunda o homem (MEDVIÉDEV, 2012, p. 48-49).
Como posto por Medviédev (2012), os valores ideológicos encontram-se manifestos exteriormente e se situam entre nós, entre o eu e o outro. Nesse sentido, a prática culinária funciona como uma ponte entre sujeitos (VOLÓCHINOV, 2017) e é configurada por uma determinada organização socioeconômica, bem como cria determinadas formas de comunicação social. Tal como nos diz Volochínov (2013) acerca da linguagem, podemos entender a culinária como um produto da atividade humana, na qual o sujeito, ao trabalhar com os alimentos, movimenta-se em um mundo de valores e sentidos concretizado por uma cadeia discursiva constituída por receitas, rituais, práticas gastronômicas, hábitos alimentares, culturas, classes sociais, tempos e espaços, valorações acerca do que é bom ou ruim, comestível ou não, sofisticado ou não, etc.
Resta-nos salientar que a análise apresentada não objetivou esgotar as potencialidades de sentido e os caminhos analíticos possibilitados pelo filme Estomâgo (2007), e apenas tratou de esboçar uma breve reflexão que planejamos aprofundar em trabalhos futuros.
Referências
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora Martins Fontes, 6ª ed., 2011.
ESTOMÂGO. Direção: Marcos Jorge. Produção: Cláudia da Natividade. Distribuidora: Downtown Filmes, Brasil, 2007, 113 min.
MEDVIÉDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução de Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Contexto, 2012.
MURTA, I. B. D.; SOUZA, M. M. P. de.; CARRIERI, A. P. Práticas discursivas na construção de uma gastronomia polifônica. RAM – Revista de Administração Mackenzie, v. 11, n. 1, São Paulo, jan./fev. 2010, p. 38-64. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ram/a/PkRSzTq95jrqCnnwL3H6tBb/?lang=pt (Acesso em dezembro de 2021).
PAULA, L. de.; SERNI, N. M. A vida na arte: A verbivocovisualidade do gênero filme musical. Raído, Dourados, v. 11, n. 25, jan./jun, 2017. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/Raido/article/view/6507 (Acesso em dezembro de 2021).
PAULA, L. de; LUCIANO, J.A.R. A filosofia da linguagem bakhtiniana e sua tridimensionalidade verbivocovisual. Estudos Linguísticos (São Paulo. 1978), v. 49, n. 2, p. 706-722, 2020. DOI: 10.21165/el.v49i2.2691. Disponível em: https://revistas.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/2691 (Acesso em dezembro de 2021).
VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução de Sheila Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.
VOLOCHÍNOV, V. N. A construção da enunciação e outros ensaios. Organização, tradução e notas por João Wanderley Geraldi. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013.
WOORTMANN, E. F. A comida como linguagem. Habitus, Goiânia, v. 11, n. 1, jan./jun., 2013, p. 5-17. Disponível em: http://revistas.pucgoias.edu.br/index.php/habitus/article/view/2844 (Acesso em dezembro de 2021).
Comments