José Cezinaldo Rocha Bessa (UNESP/UERN) [1]
“Olha, eu trabalhava e tive que descobrir meu método sozinha. Não tinha conhecido ninguém ainda. Me ocorriam idéias e eu sempre me dizia: “Tá bem. Amanhã de manhã eu escrevo”. Sem perceber que, em mim, fundo e forma é uma coisa só. Já vem a frase feita. Enquanto eu deixava “para amanhã”, continuava o desespero toda manhã diante do papel branco. E a idéia? Não tinha mais. Então eu resolvi tomar nota de tudo que me ocorria.” (Clarice Lispector, grifos meus)
Das diversas práticas que me movem no universo da academia, seja como pesquisador, seja como professor, seja como aluno, a produção escrita é, decididamente, aquela com a qual eu tenho estabelecido uma relação mais amorosa. Não porque sempre fui um sujeito dado a escrever ou porque tenha aprendido a escrever com alguma “maestria”. Pelo contrário, foi justamente num contexto de tomada de consciência de minha dificuldade de escrever (atestada por ocasião da produção da temida “redação de vestibular”), que eu passaria a olhar para a escrita com mais entusiasmo, se assim posso dizer.
Já durante a minha formação no curso de Licenciatura em Letras, eu viria a me interrogar sobre como um sujeito como eu, que apresentando tanta dificuldade de escrita, poderia estar justamente ali, num curso de Letras (onde já se imagina alguém que sabe “ler e escrever bem”, que escreve com clareza, com objetividade, sem “erros” de regência ou concordância… alguém que escreve com “perfeição”). Mais, como a partir de minha experiência e de minha formação poderia colaborar com essa tarefa árdua (inclusive de formação) de tantos outros sujeitos em condições parecidas com aquela em que eu me encontrava quando comecei meu curso.
Uma coisa estava clara, para mim, naquele momento: eu não sabia escrever. E mais, eu sempre fazia questão de dizer: escrever é um grande “martírio”. O meu encontro com a escrita, com aquele papel em branco, era também, ressignificando e/ou reacentuando aqui as palavras de Clarice Lispector, um momento de desespero, de angústia.
Gosto de ser honesto comigo mesmo. De pensar que escrever não é uma dessas atividades que mais me desperta prazer, ainda que eu a pratique diariamente, de pensar também que é uma atividade que eu gostaria de adiar, talvez, para um amanhã, um depois de amanhã… ou, quem sabe, indefinidamente. Mas sou chamado à realidade e a reconhecer o lugar essencial e decisivo que a escrita de textos desempenha na minha formação e, certamente, na vida de cada um que me ler. Entendi que escrever é preciso e é exercício essencial na busca incessante por respostas às questões que me cercam e me constituem como pesquisador, como professor, como aluno, como filho, como irmão, como amigo… como sujeito, como ser de linguagem.
Não por acaso, até hoje me interesso por pesquisar a produção escrita. Não por acaso, até hoje me coloco na escuta dos discursos que emanam da escrita produzida no espaço de sala de aula. Quero pensar que os escutar não é tão somente uma atividade de pesquisador, mas que os escutar é também uma forma prazerosa de compreender como me constituo como produtor de textos e como posso contribuir com a escrita do outro, desse outro que me constitui, também, em sua escrita (ainda que não apenas por meio dela).
No meu percurso de encontro com essa temática e com leituras sobre ela até o momento, aprendi também que, se para alguns, escrever é um exercício fácil e prazeroso, para outros não passa de uma atividade torturante, algo que se poderia adiar, como desejam diversas vezes muitos de nossos alunos, quando lhes é solicitado escrever, por exemplo, um artigo científico para uma disciplina, ou para um evento científico ou para um periódico.
Estou convicto de que muitos alunos (inclusive formandos e até já graduados em Letras, e em outras áreas, certamente) compartilham até mesmo de um sentimento de aversão ao escrever, em especial quando se trata de escrever textos científicos. Para o aluno (o aluno de iniciação científica, o aluno que está começando o mestrado, por exemplo), que se encontra em um estágio inicial de formação como pesquisador, escrever um texto científico trata-se, muitas vezes, de uma atividade aterrorizante. Confrontados com a necessidade de obedecer a convenções específicas (até então desconhecidas) estabelecidas pela comunidade acadêmica, cujo domínio, via de regra, demanda tempo e realização de atividades sistemáticas, muitos alunos se sentem desencorajados a escrever qualquer texto.
Na contramão desse quadro, tenho pensado e insistido em problematizar a relevância do exercício constante da produção de textos científicos e de publicação desses textos como pilares essenciais da formação do pesquisador, sobretudo do pesquisador iniciante. Se falo pilares, no plural mesmo, não quer dizer que eu tome o escrever e o publicar de forma estanque, separada. Minha ideia é não dissociar. Também não é pensar que se deva escrever textos científicos por obrigação (para cumprir, por exemplo, as exigências de uma disciplina, como expresso acima) ou para ceder às pressões do que se convencionou chamar de “produtivismo acadêmico”. É pensar que se escreve, acima de tudo, para se socializar uma leitura, uma compreensão, para interagir.
É certo que, de início, logo nos primeiros escritos, é difícil esperar que o pesquisador iniciante consiga produzir um texto científico publicável. Se no começo é um texto com ideias mal articuladas ou mesmo com “cópias” de trechos, aos poucos, com trabalho de orientação, com incentivo constante e um pouco de persistência, se chega a um texto de mais qualidade. As idas e vindas, as rasuras, fazem parte do processo de aprendizado. E elas contribuem para que o pesquisador iniciante se aproprie das habilidades de escrita científica e se familiarize com as convenções próprias do fazer científico. Para aqueles que se situam no campo das ciências humanas, nos quais se inserem os estudiosos da linguagem, isso não pode ser visto como algo menos importante e significativo do que uma contribuição relevante apresentada por um pesquisador experiente. Afinal, não se pode esquecer que cada escrita tem um significado único, singular na vida de cada sujeito-pesquisador e no seu processo de formação.
Quando insisto em não dissociar o escrever do publicar é porque penso também que o leque de possibilidades de diálogos que a publicação científica pode possibilitar contribui significativamente para o desenvolvimento pleno da capacidade de escrita de textos científicos. Penso que a escrita de textos dessa natureza é lugar para se explorar o diálogo com o-(s) outro-(s), a resposta de um outro como lugar de compreensão, cujos reflexos podem ser bastante proveitosos, já que, como nos ensina o pensamento bakhtiniano [2], “a compreensão amadurece apenas na resposta”. Penso aqui em várias possibilidades de diálogo, com:
o outro que se é e que se altera a cada espaço-tempo da escrita;
os autores, estudiosos e pesquisadores que se ler;
o professor e/ou seu orientador de pesquisa;
o seu colega, quando o texto que se produz é um trabalho coletivo;
o avaliador do texto de um evento ou de um periódico
o editor de um periódico ou o organizador de um livro;
o interlocutor presumido (seja de um evento, de um periódico ou de uma coletânea);
a grande temporalidade, de que fala o Círculo de Bakhtin.
Ainda que essa rede de diálogos nem sempre seja possível ou ainda que o seu produtor não tenha um retorno visível e concreto de um outro (falando aqui de uma resposta sob a forma de correções, apontamentos, sugestões, encaminhamentos, etc.), é fundamental que o pesquisador, especialmente aquele iniciante, pratique o exercício constante da escrita do texto científico, porque há sempre, nessa prática, uma possibilidade de diálogo, de encontro com um outro (pode-se pensar aí os diálogos do tipo 01 e 07 suscitados acima), de interagir, o que não deixa de ser sempre um momento de rico aprendizado. Não se pode deixar de pensar o exercício da escrita de textos científicos também como um lugar de descobertas e de produção de conhecimentos, como postula Amorim [3], ao tratar da escrita do texto de pesquisa.
Mais interessante mesmo é vislumbrar ser escutado/lido, porque acredito que, como consequência da intensidade com que se valoriza e se pratica a rede de diálogos apresentada acima, tem-se um alargamento cada vez maior da consciência do pesquisador, amplia-se a profundidade de sua compreensão – porque implicada aí uma luta entre pontos de vistas, entre posições de sujeitos, cujo resultado é a mudança mútua e o enriquecimento [4] –, numa espécie de diálogo inconcluso, como bem retratado no poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto:
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo, entre todos os galos.
Diálogo como cruzamento de vozes, de ideias que se tecem a partir de ideias e que sugerem ideias, que são tomadas de empréstimo, “repetidas”, reacentuadas, que produzem sentidos… Profusão de diálogos, velados e explícitos (sem usar de más condutas), que marcam o dizer do pesquisador, (des)estabiliza-lhes e enriquecem seu dizer, ampliando, assim, as possibilidades de conquistar e assegurar uma maior interlocução no universo da academia, e, portanto, de se fazer escutar por outros tantos sujeitos. Afinal, como nos ensina Graciliano Ramos, em seu poema “As lavadeiras”, “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.”.
Que ousemos cada vez mais dizer e dizer sempre mais, ainda que o que se diz possa parecer coisa trivial para alguns, como condição de aprendizado e de paulatina inserção na esfera acadêmica, até porque, não se nasce pesquisador, tampouco sabendo escrever textos (científicos e não científicos) com maestria. O desafio da escrita é o mesmo de aprender falar e andar. E o desafio de se alcançar uma certa condição de excelência na escrita de textos científicos implica ao pesquisador (iniciante e também o já “adestrado”), a disposição para fazer e refazer quantas vezes forem necessárias, bem como a sabedoria para acolher elogios e receber críticas e (re)agir… Esse é um processo que se constrói a vida toda: a cada escrita, a cada texto corrigido, a cada parecer recebido, a cada texto recusado, a cada trabalho apresentado, a cada texto publicado, a cada reencontro com o papel em branco, a cada “(a)manhã”… Isso representa um modo de ser e de vivenciar, no mundo e na academia, a dimensão dialógica expressa pelo pensamento bakhtiniano, posto que, nessas condições, o escrever passa a ser lugar de compreensão, de exercício de reflexão, de descobertas, de aprendizado… enfim, lugar de escuta e, ao mesmo tempo, de fazer ouvir a “própria voz”, de se constituir como sujeito de linguagem, sujeito responsável e responsivo, em pleno embate de ideias. Ideias em jogo e movimento, dentro e fora de nós, em nó.
[1] Registro aqui um agradecimento a Luciane de Paula pela leitura atenta da primeira versão deste texto e pela inter-ação estabelecida. Os valiosos apontamentos e pertinentes sugestões resultantes dessa inter-ação estão refletidos e refratados na versão aqui apresentada.
[2] BAKHTIN, M. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 2010, p. 90.
[3] AMORIM, Marília. Freud e a escrita de pesquisa: uma leitura bakhtiniana. Eutomia: revista online de literatura e linguística, ano 2, n. 2 , dez. 2009.
[4] BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Tradução do russo de Paulo Bezerra. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 378.
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