Marcela Barchi Paglione
É comum dentro das manifestações artístico-culturais o embate entre o que poderia ser considerado verdadeiramente arte e o que é, desse ponto de vista excludente, “massivo”, popular. Costuma-se opor a chamada cultura oficial, com C maiúsculo, da cultura popular, rebaixada em contraste com a elevada.
Há um grupo social mais crítico que não aceita como válido o popular, preconceituosamente tido como menos rico, menos bem elaborado. O que ocorre é que o popular é próximo da esfera do cotidiano, está mais ligado ao inacabamento da vida, mas não é por isso que deve ser rebaixado à noção ideológica de manifestação cultural inferior.
Este embate se deve à errônea divisão polarizada entre o popular e o oficial, ou entre o coloquial e o artístico, de forma que cada manifestação deve se enquadrar em uma divisão que se encontra em um local afastado, não-corrompido pelo outro. Na realidade, há uma inter-relação dialética entre a chamada cultura oficial e a popular.
Devemos levar em conta que o que é elevado pode ser um dia levado à esfera das manifestações culturais populares, ou seja, “cair no gosto do povão”, incorporado pela “indústria cultural”, o que poderia ser considerado um rebaixamento de sua qualidade para os mais puristas, que logo encontram algo que não tenha sido ainda descoberto pela massa. Por outro lado, o que é popular, massivo, pode vir a ser oficial. No que tange a discussão sobre gêneros discursivos, os gêneros do cotidiano, primários, podem receber acabamento estético e maior posicionamento ideológico, tornando gêneros secundários.
Tomamos como exemplo neste texto a música jazzística. O jazz é um exemplo de ter nascido em meio ao embate entre culturas, há dentro de sua constituição um embate ideológico: por um lado, o que seria a cultura musical oficial, que é aprendida em escolas, a chamada música “clássica”, teoricamente aprendida e registrada oficialmente em partituras; por outro, o “baixo”, popular, pois era parte da cultura negra, rebaixada no processo de colonização dos estados americanos do sul. Os negros trabalhavam nas lavouras e, a partir das chamadas work songs, canções que entoavam enquanto trabalhavam, combinadas com as músicas espirituais em que demonstravam sua fé, além do ritmo mais marcado, próprio às regiões tropicais e da frequente improvisação. Nascido do diálogo entre duas culturas aparentemente opostas, o jazz tem em sua constituição o embate entre o popular, negro e africano, e o clássico, branco e europeu.
Criado nos anos 20, na cidade de Nova Orléans, Estados Unidos, cidade marcada pelo embate cultural único dos diversos povos que ali chegam pelos portos, como africanos, franceses entre outros, não poderia haver melhor berço para um estilo musical tipicamente dialógico.
À medida que as múltiplas influências alienígenas se vão ligando nesse forno nativo que é Nova Orleans, ganha o negro novos elementos que acrescentar à sua música. Polcas e mazurcas europeias são executadas lado a lado com melodias folclóricas, ritmos afro-cubanos, danças espanholas canções calipso (…). Mas o fator negro – o mais orgânico – continua predominante. (MORAES, 1941, p. 82)
Segundo Moraes, na Congo Square, no coração da cidade, era permitido para os negros o exercício de rituais de sua cultura em público, em meio a eles eles, havia sempre a música e a dança, ambiente raro em que se podia ver a coexistência cultural do que era oficial e não-oficial, uma verdadeira praça pública. Em um sentido um pouco mais metafórico, os bordéis de Nova Orléans, como em uma espécie de “praça pública”, eram os locais onde as culturas chamadas não-oficiais poderiam coexistir com a oficial, onde adquiriam mesmo status. Havia uma liberdade dos músicos para exprimirem sua cultura à sua maneira, sem precisar recorrer às formas fixas de partituras da música clássica.
Havia na Congo Square e nos bordéis da cidade a festividade e os rituais populares, ambos pertencentes à esfera da vida cotidiana. Em meio a estes ambientes plenos de diferença um ambiente propício à formação deste estilo musical dançante, tão diferente do clássico europeu. Um ritmo marcado pela latinidade, pelo calor dos trópicos e pela alegria de um povo em um momento de liberdade, transparecida nos frequentes improvisos dentro das músicas. Faz-se presente o elemento corporal e coletivo nas músicas de forma que qualquer um que as ouvissem era impelido a se movimentar e participar da dança, além da relação deste estilo de música com a sensualidade do baixo ventre (já indicado pela proximidade da música com os subúrbios e os bordéis), inibido na música clássica e na cultura oficial em favor da racionalidade do alto extrato corpóreo, a cabeça.
O jazz é uma música com raízes populares, nasce da festividade do povo afro-americano, como um momento de liberdade frente à opressão branca, mas também é influenciada pelas raízes europeias clássicas aprendidas primeiramente pelos músicos, pois aquela era o único estilo musical possível na época. As músicas jazzísticas trazem dentro de si costumes diversos e diferentes tradições musicais, de tal forma imbricadas uma na outra que não podemos separar e dizer, isto é influência da música de Bach etc. É por isto que este estilo é tão único e ao mesmo tempo dialógico.
No entanto, apesar de ter sido constituído na e pela população negra, ou creole, principalmente de Nova Orléans, com a popularização do estilo, este acaba sendo incorporado pela cultura “branca”, saindo dos subúrbios e casas noturnas para gravadoras e casas de show, ou seja, torna-se oficial.
Certamente estamos trazendo o problema de forma simplória, de forma a discutir a implicação de uma cultura em outra. Não há, portanto, uma segregação do que é popular, massivo interna ao objeto, este o é conforme os fios ideológicos diversos que nele perpassam, o embate ideológico entre o popular e o oficial, formando, assim, o juízo de valor, positivo ou negativo. Tanto o é que, hoje, jazz é considerado quase “cult”, destinado ao público de gosto “mais refinado”. Isto nos indica a trajetória ideológica desta manifestação cultural, em um primeiro momento de extrema popularidade, e, em outro, elevada a quase um “clássico” na tradição musical ocidental.
A partir do exemplo do jazz é possível entendermos que há uma relação dialética entre o popular, presente na esfera do cotidiano, ou “massivo”, e o oficial, artístico-ideológico, de forma que ambos se constituem em diálogo, num constante inacabamento próprio à existência. É através desta relação que pensamos em um vir-a-ser permanente das posições ideológicas das manifestações culturais, já que o signo tem em si milhares de fios ideológicos conforme os grupos sociais que o utilizam. Assim, dentro do gênero canção, buscamos o exemplo do Jazz, que contem em si o embate ideológico das classes sociais.
Referências
BAKHTIN, M.M (1920-1974). Estética da Criação Verbal. Trad. (russo) Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
___. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: HUCITEC; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1993.
MORAES, V de. Jazz & co. São Paulo: Companhia das letras, 1941.
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