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Construção do filme musical em The Rocky Horror Picture Show

Nicole Mioni Serni [1]

O presente texto pensa a produção cinematográfica, e mais especificamente, a do musical, a partir dos estudos do Círculo de Bakhtin, Medvedev, Volochinov, de forma a considerar o filme musical como gênero discursivo. As obras do Círculo se debruçam sobre objetos como a literatura, por exemplo, em especial, o romance. Porém, neste texto, ao se pensar o filme sob a ótica de Bakhtin toma-se uma posição de análise não tão usual, mas que se justifica ao se refletir sobre os conceitos gerados pelo filósofo russo. Ainda que seus objetos de análise fossem diferentes, ideias como diálogo, gênero discursivo, entre outras, fomentam discussões e possibilitam análises de artes diversas, entre elas, o cinema.

A arte do cinema possui

suas maneiras de sugerir, através da colocação da câmera, do enquadramento e da interpretação, fenômenos como intimidade ou distância, companheirismo e dominação, em suma, a dinâmica social e pessoal que se realiza entre interlocutores. (STAM, 1992, p.63)

O filme musical, objeto do presente estudo, possui, como gênero discursivo, particularidades que se repetem, que permitem que este seja reconhecido como musical, tais como o canto (aqui será pensada a canção) e a dança (ou coreografia), por exemplo. Essas marcas possibilitam o reconhecimento do gênero, pois, mais do que estarem presentes no enunciado, elas constituem o filme musical. Há, no entanto, também as características inovadoras, únicas a cada novo exemplar desse gênero. Não existe, então, uma receita pronta, com exigências fixas, em que todo gênero deve se encaixar, mas sim formas relativamente estáveis, em que o gênero apresenta particularidades que se repetem ao mesmo tempo em que apresenta novas possibilidades de construção arquitetônicas. Sendo todo enunciado, conforme o Círculo, único e irrepetível, cada exemplar de um devido gênero sempre apresenta, concomitantemente, traços novos (instabilidades) e recorrentes (estabilidades).

O musical teve forte influência do sapateado, desde seus primórdios. Fred Astaire, já nos anos 30 (considerando que os primeiros filmes musicais surgiram no final da década de 20, a década de 30 seria também o início da produção de filmes desse gênero), atuava em filmes com papeis que sempre apareciam com a dança de sapateado. Logo surgiu também Gene Kelly, Ginger Rogers, entre outros, que permaneceram reforçando o sapateado nos filmes musicais. Pode-se dizer que, inicialmente, uma das principais características dessas obras cinematográficas era a dança de sapateado, por exemplo. A música sustentava a dança.

No entanto, o exemplar do gênero discutido a seguir se constitui justamente de forma oposta aos clássicos com danças como o sapateado, sendo um filme musical. Bom exemplo para ilustrar o quanto um gênero pode se transformar sem deixar de ser aquele gênero (o quanto o filme musical, em sua instabilidade-estável, caracteriza-se como musical).

Tendo o sapateado como um exemplo de característica comum do musical, pode-se antecipar que o filme The Rocky Horror Picture Show (1975) se constrói de uma forma especialmente instável e diferente, não esperada, para o gênero. Se, por um lado, há um acabamento previsto pelo gênero, por outro, há um acabamento inovador, voltado ao acontecimento e que caracteriza o filme como evento único na cadeia histórica do gênero musical, pela construção de seu enunciado particular que inaugura uma outra maneira de se pensar o musical. O previsto para um filme musical seria, a partir dos considerados “clássicos”, a dança do sapateado e os temas de narrativas mais leves. Contudo, em The Rocky Horror Picture Show tanto o tema quanto a construção das personagens fogem ao que se consideraria como previsto para o gênero.

The Rocky Horror Picture Show carrega traços fortes de humor e sátira, ao ressignificar marcas típicas de filmes de terror e ficção no interior de uma atmosfera que foge da oficialidade. No filme, a personagem do cientista, detentor do conhecimento, genial, criador de inovações, é interpretado por uma travesti, que canta, dança e se porta de formas que ridicularizam a imagem de um cientista “padrão”. Em sua genialidade,  cria um homem de físico musculoso, pele bronzeada e cabelos loiros. Seu Frankenstein é a materialização estereotipada de um modelo de imagem de ideal sexual.

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Fig. 1 Cena da abertura do filme

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Fig. 2 Cena com performance da personagem cientista/travesti

O início do filme já traz uma canção. Uma boca gigante, em um fundo preto, canta uma letra em que são citadas as personagens do filme que está para se iniciar. E ao longo da obra, as canções surgem fora de palcos e são iniciadas pelas personagens como falas cantadas próprias à trama, incorporadas pelas personagens.

Há também coreografia ao longo do filme e as interpretações das canções no interior do castelo (em que a maior parte do filme se passa) tomam rumos fantásticos e aparentemente fora da realidade. Na cena[2] específica em que é interpretada a canção Sweet Transvestite os movimentos da dança de Dr. Frank se concentram principalmente nas pernas e nos quadris, de forma sedutora e sensual. Esta primeira performance já transparece a personalidade da personagem em questão, pois assim como seus movimentos, Dr. Frank seduz os recém-chegados Brett e Janet.

A narrativa em si é uma história que busca fugir ao oficial. Logo, as canções, suas coreografias e letras não seguem um modelo canônico do gênero musical, como o pop rock das canções acompanhado por danças no mesmo estilo. Enquanto os exemplos canônicos de filmes musicais até então se construíam por meio do sapateado e danças clássicas The Rocky Horror Picture Show é constituído por canções de rock e com coreografias que ao mesmo tempo que remetem ao lado sexual também “brincam” com o tom de sátira, por fazer referência a filmes de ficção de uma forma cômica.

Algumas questões levantadas por Stam, voltadas ao gênero fílmico de forma geral, podem contribuir para refletir sobre esta obra musical:

O filme assume uma atitude distante, ou uma espécie de intimidade? Pressupõe um interlocutor de determinado sexo ou classe, e qual é sua atitude em relação a esse interlocutor imaginado? Quais são os pressupostos do filme em relação a nosso conhecimento, ou ideologia? Em termos retóricos, ele seduz, admoesta, convence, encanta, colabora, implora ou intimida? […] Qual a relação entre os sujeitos falantes dos filmes, em termos de posição discursiva, grau de intimidade, relação com outros personagens? Qual a sua relação implícita com o autor do texto, ou com o espectador, nos mesmos termos? E como se transmitem todas essas relações através da entonação? (1992, p.63)

The Rocky Horror Picture Show se insere na discussão gerada a partir dos questionamentos de Stam, pois é um exemplar do filme musical que possui um conteúdo ou tema que se difere do recorrente na construção do gênero ao longo dos anos. A forma, a construção desse enunciado em questão também é diferente, o que se une a um estilo único.

O espectador imaginado se encontra em um padrão da oficialidade e compreende que certos papéis ou lugares na sociedade são tomados por devidos sujeitos. Esses lugares sociais e posições ideológicas podem ser pensados a partir dos estudos do Círculo, uma vez que, para Bakhtin, todo signo é ideológico e o enunciado é o lugar da luta de classes. Pode-se compreender que existem valores que permeam os signos e os enunciados.

Em Marxismo e Filosofia da Linguagem encontra-se a discussão sobre essa concepção: “Tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo”. (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 1992, p.31). Todo enunciado está ligado a uma realidade, a um contexto histórico e social, mas, além dessa ligação, encontra-se sempre uma marca ideológica em cada signo da interação verbal. Segundo o autor, “Compreender um signo consiste em aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é uma resposta a um signo por meio de signo.” (idem, p. 34). Para que a ideologia se materialize, ela necessita de um signo, pois ele semiotiza a vida.

Os valores colocados no filme são contrários aos esperado, o que causa estranhamento e entra em embate com a construção vigente ou “oficial”. As personagens exemplificam bem a inversão mencionada. A travesti, sujeito excluído socialmente (basta lembrarmo-nos da Geni de “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque, por exemplo), possui, na trama do musical, um papel centra, de dominação.

O tema também pode ser pensado de forma diferente do relacionado ao conteúdo do gênero. Afinal, em algumas obras do Círculo, significação e tema aparecem com discussões diferentes, como afirma Cereja,

A significação é um estágio inferior da capacidade de significar, e o tema, um estágio superior da mesma capacidade. A significação existe como capacidade potencial de construir sentido, própria dos signos linguísticos e das formas gramaticias da língua. É o sentido que esses elementos historicamente assumem, em virtude de seus usos reiterados. (2005, p.202)

Enquanto a significação é o sentido criado historicamente, o tema é “único e irrepetível. Participam da construção do tema não apenas os elementos estáveis da significação, mas também os elementos extraverbais, que integram a situação de produção, de recepção e de circulação.” (idem). O conceito de tema e significação pode ser pensado em The Rocky Horror Picture Show ao se considerar o signo, por exemplo, do cientista. Na construção da personagem de Frank (a travesti) o signo cientista é reconstruído, ou seja, o tema modifica o signo, deslocando-o do padrão. O esperado de um cientista historicamente, conforme outros enunciados, é o de seriedade ou maluquice , dominador da lógica e da razão.

O lugar dominante pode ser estabelecido no filme musical em questão também pela entoação da personagem que, ao interpretar as canções ao longo do filme, coloca a voz de maneira firme e sedutora ao mesmo tempo. Na performance da canção Sweet Transvestite, por exemplo, a personagem da travesti passeia entre notas mais agudas e graves, desenho sonoro e pertencente à melodia da canção que marcam e confirmam, por sua vez, a posição de transexual. Colocar uma travesti no papel central da trama, como um cientista, refrata questões presentes historicamente na sociedade. No lugar de privilégio e dominação está, em The Rocky Horror Picture Show, um sujeito que, socialmente, não ocupa um lugar de destaque ou reconhecimento. A arte, no caso, a obra fílmica, semiotiza valores ao representar o que há na vida.

As considerações feitas acima sobre algumas tomadas de The Rocky Horror Picture Show não têm como objetivo recortar uma cena sem considerá-la no todo, mas sim trazê-la como exemplo significativo do enunciado em sua totalidade, sem esgotar a espiral dialógica de relações possíveis a partir do exemplar de filme musical.

Referências Bibliográficas

BAKHTIN, M. M. (VOLOCHINOV) (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992.

BAKHTIN, M. M. (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2011.

___. (1975). Questões de Literatura e de Estética. São Paulo: UNESP, 1993.

___. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2005.

___. (Org.). Bakhtin: Outros Conceitos-Chave. São Paulo: Contexto, 2006.

CEREJA, W. Significação e tema. In: Bakhtin: Conceitos-Chave. São Paulo: Cpntexto, 2005.

CUNHA, Paulo Roberto Ferreira da. O Cinema Musical Norte-americano: Gênero, Histórias e Estratégias da Indústria do Entretenimento. São Paulo: Annablume, 2012.

MEDVIEDEV, P. N. O método formal nos estudos literários: introdução a uma poética sociológica. São Paulo: Contexto, 2012.

SHARMANM J. The Rock Horror Picture Show. Reino Unido/Estados Unidos: 20th Century Fox, 1975.

STAM, R. Bakhtin: da teoria literária à cultura de massa. Tradução de Heloísa Jahn. São Paulo: Ática, 1992 (Série Temas, Vol. 20).


[1] Estudante de doutorado do Programa de Pós Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP Campus de Araraquara. Desenvolve pesquisa sobre enunciados fílmicos sob a orientação da professora Luciane de Paula.

[2] Vídeo da cena disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZCZDWZFtyWY

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