Bruna de Souza Silva
“Ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, mas quando isso acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já serão outras… O fluxo eterno das coisas, é a própria essência do mundo”.
(Heráclito de Éfeso, Filósofo Grego, Séc. V a. C)
A palavra vive. Saltita, vibra, seduz, envolve, agita, age, branda, adocica, amarga, atinge, tinge, molda, transforma, soma, posiciona, assume, de dentro ou por fora, o fato é que, de certa maneira, a palavra que se fez torna-se, em qualquer modalidade, necessariamente ativa. Sentido este que a considera tecida por meio de um processo, não limitada em si como uma estrutura linguístico-gramatical distanciada da realidade da vida, mas sim, em confronto e diálogo, com valores ideológicos, históricos e sociais. O circulo russo de Bakhtin não possuiu especificidades relativas propriamente à poesia, entretanto, suas discussões vinculadas à linguagem são tão abrangentes que satisfazê-las somente com a prosa seria limitá-las e não compreender as interdependências nas relações conceituais – impossíveis de serem dissociadas, pertencentes a um projeto filosófico dimensionado, em principal, entre diálogo, cultura e vida. Poética, nesse prisma, aborda toda linguagem ou discurso poético, de maneira ampla e influenciada – notoriamente – pela prosaica, em realce, de sua relação com a semântica. Conforme o teórico Cristovão Tezza ressalta (2006, p. 216), “para Bakhtin, o poético é a expressão completa de um olhar sobre o mundo que chama a si a responsabilidade total de suas palavras”. A palavra poética de Arnaldo Antunes, como exemplar dessas considerações, será aqui proposta a uma breve reflexão, diante das variações de sentidos ocasionados, em prioritário, por sua maneira própria (estilística) de se relacionar e expressar as palavras. Nesse caso, por meio do poema “Rio: o ir” (1997, p. 45), um trabalho específico entre sentido, palavra e imagem. Nesse ato artístico há um posicionamento particular do poeta com a linguagem, muito usual no percorrer de suas obras. Com camadas múltiplas de significação, a procura de clareza expressiva atrelada à “coerência de esquemas lógicos”, André Gardel (2006) salienta que “No ato de desentranhar poético do não-poético, Arnaldo Antunes negocia com métodos, vocábulos e composições das ciências naturais, principalmente a física e a biologia”.
Na construção artística mencionada, salienta-se a estrutura poética formada por base da dupla apresentação: o poema visual é exibido a partir da palavra rio, disposta de forma circular para, infere-se, aludir ao caráter cíclico e contínuo das águas, em metáfora à vida, ao qual os rios levam ao mar (como um ralo natural) que é, simultaneamente, ponto de partida e de chegada; sucessivo e sequente. O verso–titulo que compõe o poema, por sua vez, esta posicionado em uma espécie de equação onde a palavra rio esta exposta compatível à sua constituição inversa (o ir), de modo a sugerir a ênfase aos movimentos de ida e volta em representação à confluência natural e contínua do rio. Portanto, em complementação ou completude a outra parte do poema – que pode ser lido do interior ao exterior ou do exterior ao interior. Percepções plausíveis a partir do todo discursivo que tende a apresentar liames com outros discursos ou uma cadeia verbal constituída de enunciações, ao qual, um enunciado provoca outro. Nas palavras de Bakhtin/Volochínov, a enunciação realizada é como uma ilha emergindo de um oceano sem limites (2012, p. 129); afinal, a enunciação é de natureza social (2012, p. 113) e a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação. (2012, p. 117). É conveniente ressalvar, contudo, entre as inúmeras relações entre enunciados de momentos históricos distintos associados à obra em análise, dentre variadas experimentações estéticas e parcerias, em conscientização, é claro, de que os diálogos existentes em um dado enunciado são inesgotáveis, a conveniente ligação com a canção “O rio” (2006), composta por Arnaldo Antunes, Marisa Monte, Carlinhos Brown e Seu Jorge.
Ouve o barulho do rio, meu filho Deixa esse som te embalar As folhas que caem no rio, meu filho Terminam nas águas do mar
Quando amanhã por acaso faltar Uma alegria no seu coração Lembra do som dessas águas de lá Faz desse rio a sua oração
Lembra, meu filho, passou, passará Essa certeza, a ciência nos dá Que vai chover quando o sol se cansar Para que flores não faltem
Para que flores não faltem jamais
(http://www.marisamonte.com.br/pt/musica/infinito-particular/cifras/infinito-particular-o-rio. Segue link da canção para ser lida/ouvida, uma vez que o gênero é composto de, no mínimo, letra e música e, nesse caso, tratar de um enunciado construído a partir de um outro, anteriormente existente. Processo típico em AA, já iniciado quando ele se encontrava nos Titãs. Exemplo: Poema e canção “O que”, em análise por Luciane de Paula)
Por meio da letra aludida, nota-se que o sujeito da canção revela um apelo ao outro (ouve o barulho do rio, meu filho) sugestionado por inúmeras metáforas. O sujeito lírico apresenta, ao percorrer a canção, a atenção ao som típico do rio (como uma canção de acalanto – Deixa esse som te embalar) destinado a se deixar levar pelo curso da vida, por uma espécie de “destino”, marcado, aqui, pela natureza e, especificamente, pelo rio às ondas do mar. O rio é outra vez citado por seu caráter sequente em menção a elementos físicos e lógicos, em paralelo, neste plano de sentido, com a simbologia à passagem “indispensável” do tempo (lembra, meu filho, passou, passará). O rio, em suma, é equiparado a uma oração por transmitir serenidade sonora e prosseguir em um processo natural imprescindível para vida (Que vai chover quando o sol se cansar / Para que flores não faltem / Jamais). O acontecimento poético, mesmo em gêneros diferentes, é, portanto, ocasionada por uma re-significação semântica atrelada à forma de expressão, ao trabalho com a palavra, ao agir na linguagem e como ou quem atribui-lhe sentidos – a compreensão com a promoção de diálogos específicos inexauríveis que se complementam entre si e, solicitam, em seu todo, a harmonização de sentidos. Em essência de texto, por fim, se alude ao poeta Paes (1996) que, por sua vez, remete à máxima filosófica de Heráclito, aqui exposta como epígrafe inspiradora desta breve reflexão, pois a palavra poética nunca se gasta por completo: “quanto mais se brinca com elas, mais novas ficam / como a água do rio que é água sempre nova / como cada dia que é sempre um novo dia / Vamos brincar de poesia?”
Referências bibliográficas principais:
Antunes, Arnaldo. Dois ou mais corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva, 1997. Bakhtin, M. M. (MEDVEDEV). (1920-1974). Estética da Criação Verbal. (Edição traduzida a partir do russo). São Paulo: Martins Fontes, 2003. Bakhtin, M. M. (VOLOCHINOV). (1929). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2012. PAES, José Paulo. Quem, eu? São Paulo: Atual, 1996.
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