Nicole Mioni Serni (Doutorado PPGLLP UNESP FCL Araraquara)
Em minha pesquisa de mestrado, ao analisar o filme musical Across the Universe, entre as várias discussões geradas por meio do corpus, o conceito de cronotopo, conforme os estudos do Círculo de Bakhtin, entre outros, foi-me muito caro.
O filme musical Across the Universe, que possui em sua trama apenas canções dos Beatles, constrói em seu interior performances das canções da banda britânica em suas cenas e também, por vezes, a “mesma canção” (as aspas logo serão justificadas), segue sendo interpretada em cenas diferentes, entoadas por personagens diferentes, em espaços e tempos específicos. A continuidade ou “repetição” da “mesma canção” compõe, a cada cena, sujeito, espaço e tempo, significados diferentes, pois, a cada enunciação única daquela dada canção, ainda que seja a “mesma”, não a é, porque seus significados são (re)formulados a cada novo sujeito, espaço, e tempo que a situa.
Busco trazer aqui neste breve texto uma reflexão inspirada em minhas análises do mestrado, porém sem a delimitação de um filme musical apenas, mas sim de obras musicais diferentes, que se constroem a partir da “mesma canção”.
A canção Seasons of Love faz parte do musical Rent, que, tendo estreado na Broadway em 1996, teve sua versão para o cinema lançada apenas em 2005. E é a partir da obra cinematográfica, inspirada na peça musical, que pretendo refletir aqui. Seasons of Love é a primeira canção interpretada no filme, na cena de abertura, em que aparecem ainda parte dos créditos do filme. O vídeo referente a esta cena pode ser vizualisado aqui.
A letra da canção fala sobre como poderíamos “medir” um ano: em minutos, em dias, em risadas, em cafés, ou em amor? Ao ser entoada a letra em Rent, os significados produzidos são únicos e se relacionam com o contexto do filme, uma vez que temas como vida e amor serão discutidos ao longo da trama, que, para os que não conhecem o filme, discute o uso de drogas, o desemprego, a relação homoafetiva, a liberação sexual e a AIDS, por meio de um grupo de amigos em Nova Iorque. Uma das canções, também muito conhecida, do musical em questão repete o enunciado “No day but today”, o que reforça a temática de se aproveitar cada segundo da vida, tempo precioso quando visto por meio dos olhos das personagens com AIDS.
A “mesma” canção de Rent pode ser encontrada em um outro musical, pois, Seasons of Love é a primeira canção a ser interpretada no epísodio The Quarterback, terceiro episódio da quinta temporada da série televisiva Glee. O vídeo se encontra aqui. A série se configura como musical, uma vez que todos os episódios possuem performances de canções, feitas pelas personagens, sendo parte composicional e essencial no interior da trama de cada episódio individualmente, assim como na construção da história da série como um todo.
Na abertura do episódio em questão, as personagens aparecem cantando Seasons of Love todas vestindo preto, sua disposição no palco e a iluminação fazem referência à cena original de Rent, mas a canção, mesmo sendo aparentemente a mesma, cria sentidos muito diferentes da cena do filme musical. Na história da série, esse episódio se refere à morte de uma das personagens, Finn Hudson, que além de fazer parte do grupo de coral, jogava na posição “Quarterback” do time de futebol americano. O título do episódio já faz referência à personagem em questão e, ao longo do episodio, todas as canções serão relacionadas com sua morte. A personagem de Finn Hudson era interpretada pelo ator Cory Moteith, que faleceu em julho de 2013. A performance da canção Seasons of Love no interior desse episodio cria, desse modo, sentidos que se estendem para além da série: a canção se relaciona com a arte e também com a vida.
A relação arte e vida, quando pensada a partir dos estudos do Círculo, encontra-se em constante diálogo, pois “A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico […] encontra resposta direta e intrínseca dentro dela.” (VOLOCHINOV, p.2). O autor do Círculo afirma também que, para analisar o discurso na arte, “precisamos antes analisar em detalhes certos aspectos dos enunciados verbais fora do campo da arte – enunciados da fala da vida e das ações cotidianas, porque em tal fala já estão embutidas as bases, as potencialidades da forma artística.” (idem, p.4). Para a compreensão do gênero canção, no caso da presente reflexão, no seriado Glee, o diálogo entre arte e vida é essencial para a análise, uma vez que essa relação intrínseca se dá pelos sentidos únicos a cada enunciação da canção Seasons of Love, em um dado espaço e tempo, por dados sujeitos. É o cronotopo que “ambienta” as diferentes performances da canção no filme e no seriado musical.
Ao cantar sobre “como medir um ano”, as personagens de Rent colocam em questão a vida a ser vivida, em devir, enquanto os significados gerados a partir da performance das personagens de Glee se relacionam com a vida já passada, vivida, pela personagem da trama e também sujeito da vida, que falecera.
A aparente “mesma” canção se mostra por meio de musicais diferentes e demonstra as construções de sentido específicas geradas a partir de cada uma das cenas, em cada enunciado, enquanto as referenciações à vida, ilustram o diálogo constante e ininterrupto entre a produção artística e o social, relações que nunca se encontram finalizadas, mas em processo de novas gera(ações) de respostas, em movimento.
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