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A trilha sonora como entonação dentro e fora de cena

Rafael Marcurio da Cól

Não se pode negar a importância da trilha sonora no cinema, pois ela dará, por exemplo, a entonação num momento de silêncio ou o passar do tempo. O cinema contemporâneo dispõe de novas práticas para introduzir a trilha sonora em cena, desde os musicais que incorporam canções atuais e os filmes que trazem as trilhas para a inter-ação entre as personagens, como parte essencial do convívio, proporcionado, atualmente, pelas novas tecnologias, mas que já está em voga desde a fita cassete que torna as músicas e canções portáteis, além dos rádios etc. Desta forma, esse texto propõe uma reflexão sobre essas novas práticas de introdução e de imersão das trilhas, em específico, no curta-metragem Eu não quero voltar sozinho (2010) e no longa-metragem Hoje eu quero voltar sozinho (2014) ambos do diretor e roteirista Daniel Ribeiro. Essa reflexão seguirá a orientação teórica da filosofia da linguagem do Círculo de Bakhtin, Medvíedev e Volochínov e da Semiótica da Cultura, em específico, do autor Iuri Loman.

(Segue o curta-metragem:  http://www.youtube.com/watch?v=1Wav5KjBHbI )

O projeto Eu não quero voltar sozinho surge de uma ideia do diretor em mostrar a descoberta do primeiro amor e, com isso, a descoberta da sexualidade de sua personagem. Pode-se pensar que tanto o amor quanto a sexualidade estiveram e estão ligados ao olhar, desde “o amor a primeira vista” observado nos contos de fadas, a partir dessa premissa, a questão colada pelo diretor é: “O que acontece se tirarmos isso (a visão)?”. Sua personagem pretende não apenas demonstrar a descoberta do primeiro amor, mas sua construção a partir dos sons, cheiros e toques, livre dos estereótipos visuais vinculados e incutidos pelas mídias.

Essas obras (curta e longa) abordam diversas temáticas cada um com a sua especificidade, desde a sexualidade até as suas dificuldades de convívio (bullying), ora por ser portador deficiência visual, ora pode ser gay, principalmente, no contexto escolar e extraescolar: viagens, passeios, festas etc. A obra de Daniel Ribeiro deve ser alvo de estudos, uma vez que, traz as situações de maneira muito leve e simples, podendo ser vinculada, facilmente, com a vida cotidiana. Contudo, nessa reflexão, ater-se-á nas relações estéticas entre trilha e enredo, vistos como constituintes de um gênero discursivo, cinema.

Entretanto, o que se pode chamar de trilha sonora?

A trilha sonora, grosso modo, é a música ou canção que constitui a cena de um filme, novela, série etc. Seja ela, parte do projeto de dizer de sua personagem, ou não. Existem diversos tipos de trilhas, cada uma com um propósito, por exemplo: nos musicais as trilhas são foco e podem ou não participar do projeto de dizer das personagens, as trilhas apenas musicais mostradas ao fundo e as canções populares ouvidas durante o filme também são consideradas trilhas. Com isso se pode ter melhor visão dos tipos de trilhas em um filme.

Deve-se observar que a trilha, por si só, é uma obra artística e, por sua vez, é constituída de linguagem seja ela verbal, não-verbal ou mista (texto sincrético) e foi lapidada ao seu modo na construção de um acabamento estético. Com a exceção, das trilhas criadas para filmes musicais, as quais contém todo o projeto de dizer das personagens, mas que, mesmo assim, condiz a uma linguagem que advém do campo musical. Assim, esse diálogo entre a obra já existente e a que está em ato é preciso ser iminente, pois uma trilha errada pode dar um efeito não desejado ao filme, série ou novela.

Nos filmes em questão serão abordados nessa reflexão apenas dois momentos (um do curta-metragem e um do longa-metragem) que reverberarão na obra como um todo. É possível observar a semelhanças entre esses momentos, caracterizando o estilo do diretor, Daniel Ribeiro, como autor desse ato estético, que poderia ser retomado num próximo artigo.

O primeiro momento é o do curta-metragem, quando a canção tema do casal (Léo e Gabriel) aparece pela primeira vez, logo após Gabriel ter a primeira pista que Léo está gostando dele, a canção “Janta” do músico e compositor Marcelo Camelo começa no quarto do Léo e termina entoada pelos personagens, Léo e Giovana (a melhor amiga de Léo) no pátio da escola. Na canção se analisa a construção da letra como um jogo de palavras, ou seja, a estrutura da primeira estrofe se repete na segunda, entretanto, algumas palavras são trocadas, num movimento de reinteração muito comum em canções populares, porém, nessa, em especial, dá sentidos diferentes a frases muito parecidas.

E o segundo momento do longa-metragem é quando Gabriel descobre que Léo usa obras clássicas para identificar as chamadas em seu celular e fica curioso pra saber qual é “a sua obra”. Mas, ao descobrir que ele “é o Bach”, ou representado pela obra barroca de Bach, não fica muito satisfeito e sugere a Léo uma canção que acaba de apresentar ao amigo da banda, Belle & Sebastien, denominada: “There’s too much love”. Uma canção dançante e que tem solos de violinos, instrumento típico da música clássica de orquestras, mas que ganha grande espaço na música popular nos anos de 80 e 90, um ato responsivo e responsável ao se identificar com essa canção, dando a primeira pista de seus sentimentos. Desse momento em diante, a canção se torna trilha sonora da amizade/namoro entre os dois jovens.

Esses momentos foram escolhidos pelo modo como a trilha tema do casal é introduzida nas cenas, no curta-metragem de maneira tradicional (fora da interação), mas que depois entra pela voz dos amigos. E no longa-metragem, que entra escolhida por Gabriel, nesse ato, responsivo e responsável, essa canção demonstra seu carinho por Léo, apenas pelo título da canção é possível comprovar essa proposição, pois “There’s too much love” somando a ideia de diversidade e das várias formas de amor. Entra constituindo a inter-ação entre as personagens e depois se torna sua trilha tema.

Considerando o texto artístico, as trilhas sonoras corroboram para a construção da enunciação do filme, que é influenciada pela relação “ouvinte-participante” das cenas em questão, pois ela é a entonação dada pelo diretor. Segundo Volochínov, no artigo, “A construção da Enunciação” (2013): “O vínculo entre a enunciação, sua situação e seu auditório se estabelece, sobretudo pela entonação.” (Idem, p.174), sendo a entonação, “a expressão sonora da valorização social” (Ibid, p.175), isso no âmbito da vida cotidiana, mas o linguista russo usa obras literárias e elementos musicais dentre outros para exemplificar suas proposições, deixando a margem para interpretações sobre a sua reflexão que ao falar da vida reverbera na arte. Assim, considera-se que deva ser levado para o contexto artístico, no caso, do filme, pensando que o diretor viabiliza sua obra, introduzindo a trilha sonora coerente a sua proposta.

Para Lotman em sua obra, A estrutura do texto artístico (1978), essa questão sobre a aplicação no texto artístico, é mais evidente, visto ser o foco de sua obra. Observa-se que para Lotman a obra de arte é um dos meios de comunicação, ou seja, existe um emissor e um receptor, que é, no caso dos filmes, passar não uma, mas diversas mensagens, e é constituído por um tipo de linguagem (Idem, p.45), como: os enquadramentos de imagens, as falas das personagens, os cenários e as trilhas sonoras, foco dessa reflexão. Tem-se em cada sistema de comunicação uma função modalizante (Ibid, p.45), na qual pode ser observado nos tipos de trilhas abordada acima, sendo que cada uma tem uma função dentro da obra. Deste modo, ao escolher o gênero também opta por um tipo de linguagem com qual pensa abordar o leitor, segundo Lotman ( Ibid, p.50). Assim, constituir um longa-metragem ou um curta-metragem requer um tipo de linguagem, no curta algo mais breve e simples e no longa algo mais desenvolvido. Isso não anula as importâncias de ambas, entretanto, o tipo de linguagem utilizada é diferente.

É possível perceber uma convergência entre as teorias citadas que tem metodologias diferentes e que tratam de objetos diferentes, mas pela mesma perspectiva, a dialógica. Ambas se defrontam com a linguagem, uma de maneira sistêmica e outra de maneira filosófica. Contudo, é possível fazer uma intersecção entre esses elementos que se complementam, de um lado se tem uma perspectiva que aborda a vida, de uma maneira geral, filosófica e aborda a questão do texto artístico, mas não como prioridade. A outra tem como prioridade o texto artístico e pensa nele como meio de comunicação. Com isso, percebe-se que o diálogo é o fio condutor desses dois nichos teóricos, permitindo fazer uma aproximação entre as teorias, que se tocam em diversos aspectos e se complementa em outros.

Esse ponto abordado é um dos que se complementam, uma vez que, temos de um lado a aplicação em diálogos da vida cotidiana no texto de Volochínov e Lotman diz que o texto artístico é um meio de comunicação. Aproxima essas duas perspectivas, complementando as peculiaridades técnicas de um texto artístico no que cabe a Lotman E Volochínov, por sua vez, com a abrangência filosófica que dá ao seu texto o torna caro implicitamente nos estudos de textos artísticos.

Pode-se pensar na trilha sonora como a entonação no conjunto de uma cena de  filme, pois, ela a agrega valores incutidos na sociedade. Ao participar ativamente da interação lhe dá um carácter sutil de comunicação entre as personagens, criando uma atmosfera mais propícia para o romance.

Analisa-se que tanto no longa quanto no curta existem o entrelaçamento entre as trilhas temas e o enredo dos filmes. No caso do longa, até mesmo entre o arranjo e os personagens, uma vez que, Léo representa o clássico, na canção, exposto pelo violino e Gabriel pelo rock dançante, isso é possível afirmar a partir do contexto exposto na obra. E no curta, sutilmente demonstra a descoberta da sexualidade, que como a canção de Marcelo Camelo é delicado e ingênuo.

Conclui-se que ao permitir a entrada da trilha na interação entre as personagens o diretor permite que  canção também comunique na vida cotidiana e no texto artístico, criando uma atmosfera romântica que impulsiona os filmes para o seu ápice. Isso se constrói, a partir do conceito de entonação que traz o social para a cena e a modaliza.

Bibliografia:

LOTMAN, Iuri. A Estrutura do texto artístico. Lisboa: Editora Espamta, 1978.

VOLOCHÍNOV, V. N. “A construção da enunciação” In: A construção da enunciação e outros ensaios. São Carlos: Pedro & João Editores, 2013. 157-189.

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