Glaucia Vaz Núbia Mical Colaboração: Luciane de Paula
Para além de pensar sua origem que, pela própria mescla de gêneros musicais, pôs-se rebelde porque questionou valores, pensar em rock deveria ser ponto de partida para rever o conceito, historicamente marcado, de rebeldia: de que lugar, afinal, tal postura rebelde pode ser construída? Se, em sua invenção, a qual remonta às décadas de 40 e 50 do século XX, o rock (e toda uma subdivisão de gênero musical no qual foi ramificado) se constituiu lugar de contestações (musicais, comportamentais, culturais e sociais), seria possível pensá-lo, hoje, ainda atrelado a essa configuração discursiva de rebeldia de seu nascimento? Partindo de uma leitura discursiva de algumas capas de disco, cogitamos se chegaremos a temas especificamente de uma “cultura/postura rock”. Que batimentos discursivos possibilitaram determinados dizeres sobre uma noção de rebeldia? Pensemos, por exemplo, a polêmica gerada quando do lançamento de alguns álbuns nas décadas de 60/70/80: capas proibidas, censuradas, trocadas e, agora, relíquias para colecionadores: os casos de Virgin Killer (1976), dos Escorpions; Unfinished Music N°. 1: Two Virgins (1968), de John Lennon e Yoko Ono; Yesterday and Today (1966), dos Beatles; e Electric Ladyland (1968), de Jimi Hendrix. As capas desses álbuns trazem enunciados que funcionam dentro de uma regularidade que os configura, em especial, porque a nudez, nelas, pode ser tomada como enunciado específico. Longe de negar todo um sentido mercadológico, perguntamo-nos como é possível essa rebeldia ser objeto de Mercado. Além disso, diante desse itinerário [há um disco, há uma loja e há uma subversão escondida ali], resta na análise desse discurso, pensar a rebeldia como a procura por brechas no imaginário dos que possam ser afetados pelas capas dos discos, dando a si (como banda e como afirmadores de opinião), uma maneira de se comportar bem própria, frente às suas discordâncias existenciais. Porém, se colocarmos uma filosofia de imagem aqui (assim como tem a filosofia do comportamento, do mercado, da religião, da linguagem), somos impelidos a pensar a imagem do rock a formulações discursivas, projetando as consequências de colocá-lo dentro do modo de vivenciar nossas particularidades, recortadas em nosso cotidiano, em especial a necessidade das gravadoras e lojas de vender esses discos. A máxima de que uma imagem fala mais do que mil palavras prevalece no caso das capas e dos discos também, complementando letras subversivas e acordes alucinados. Assim, uma análise dessas imagens indica que o rock pode estar imerso numa possibilidade de manifestação, a qual se vincula a uma atitude. Virgin killer (1976) é a remissão a enunciados sobre a pureza da infância, para um conceito próprio de infância em que existe uma relação entre criança e adulto, bem como a não sexualidade se choca com a atualização do nu. Esse mesmo aspecto é enunciado numa configuração contrária ao que, hoje, poderia ser considerado crime (até remetendo à pedofilia).
Virgin Killer (1976), Escorpions
A memória discursiva, que choca distintas formações discursivas, é uma operadora de rebeldia quando se pensa na rachadura que aparece exatamente sobre o sexo da menina que está sentada de maneira sensualmente explícita, olhando fixamente para o spectator barthesiano, esse mesmo de A câmara clara, incomodando-o. Trata-se do studium e do punctum, um pé que escapa ao projeto geral da fotografia, mas que nos segura em sua forma e tamanho. Que lugar é esse em que o nu é sinal de rebeldia? O lugar em que o nu é um tabu e a criança não é sexualizada. O local em que nudez e sexualidade são elementos implicantes entre si. Para lá de pensar a história que aparece na imagem, podemos perguntar acerca da imagem que constitui o histórico e dele é constituído: a imagem que nos mostra “não, uma criança não pode ser objeto de sexualidade” ou “não, a nudez não pode estar assim exposta”. Não é a história que explica essa imagem, mas é da história e nela mesma que o studium é construído. O rock, não só o rock, desse lugar de contestação, se põe a chocar. Ainda assim, quando a fotografia é substituída, no Brasil, pela imagem do corpo (nu) de uma mulher com um escorpião, a nudez se faz ali uma necessidade – duas, em última instância: estratégia mercadológica e afirmação de uma identidade rebelde, o rock. Daí nos lembramos de Blind Faith (1969), homônima da banda, que traz esta mesma regularidade entre nudez-infância-sexualidade. Dispositivos no funcionamento de uma ordem dos dizeres. Eis o corpo como suporte de discursos.
Unfinished Music N°. 1: Two Virgins (1968), John Lennon e Yoko Ono
Unfinished Music N°.1: Two Virgins (1968) também é capa polêmica e proibida por conter dois adultos com os seus sexos expostos. A pose do casal é comum, típica de quem está diante de uma lente e espera ser capturado. Não se pode dizer que haja qualquer sensualidade na foto e a sexualidade não está em outro lugar senão na exposição dos corpos de Lennon e sua esposa. A capa trata de sexo? Definitivamente não, mas é com a nudez que o studium questiona essa construção do nu como expressão da sexualidade. É o sexo do ex-Beatle que aponta para nosso contrato social com o fotógrafo. E ficamos ali, abandonados nos e como os objetos que se encontram atrás dos corpos nus, vendo (e escutando) os ecos e reverberações dessa “ música inacabada”, como sugere o título do álbum. Por que não pensar também em Electric Ladyland (1968), de Jimi Hendrix? Ali, a rebeldia é construída nesses enunciados-olhos-que-nos-encaram: os seios das várias moças que, aglomeradas, são a formulação (sua imagem é a formulação) dos dizeres sobre a liberdade do corpo. Estamos na década de sessenta e o corpo precisa ser libertado. Mais que isso: o corpo, o sexo e a mulher – momento de grandes revoluções, como a sexual e a feminista, estão escancaradas nesses olhos que nos encaram. O rock se apresenta como o portador dessa reivindicação de liberdade, de deslocamentos elétricos, psicodélicos, embalados por LSD (refresco elétrico) e movimentos contraculturais massivos que cultuavam “paz e amor”.
Electric Ladyland (1968), Jimi Hendrix
Yesterday and Today (1966) é o grotesco dos corpos de bonecos mutilados e pedações de carne, bonecos-bebês, sorrisos dos garotos de Liverpool, tudo isso que vem nos pungir e nos afetar em nosso posicionamento discursivo. Dois enunciados muito distintos na fragilidade desses sujeitos e a reação alegre dos sorrisos digladia com os pedaços dos corpos que carregam harmonicamente felizes. Um interdiscurso com o tempo e os sujeitos formado pelo grotesco. Um incômodo causado por uma (ir)regularidade. Sofremos e as poses-risos nos ferem em algum lugar que nos escapa. Esse studium que se dá no fluxo de ideias ao se deparar com imagens chocantes é ininterrupto. No entanto, o caminho atravessado de percepções, químicas, vivências e afetos do spectator está além do previsto. E é nesse punctum que nos deixamos para as roupas brancas dos boy rock band. Jalecos de açougueiros-médicos-professores. Limpos. Sem uma gota de sangue. Ao mesmo tempo, quase que insuportáveis no contato com os pedaços de carne com os quais brincam.
Yesterday and Today (1966), The Beatles
Nessa produção do incômodo é que a rebeldia do rock se constrói. Muito mais do que canções, vestuário e postura nos palcos, é no todo do conjunto que engloba também as capas de álbuns, os encartes, os shows, entrevistas e o estilo de vida (elementos aqui não abordados) que podemos ver funcionar lugares da história, posicionamentos que assumimos e a reatualização de sentidos já formulados outrora. A nossa contemporaneidade, influenciada pelo pensamento capitalista, procura trazer de novo à frente esse espírito adaptado. Até mesmo para os rebeldes, marginais, subversivos há um limite, um código moral no qual criança e sexualidade, por exemplo, não podem ser associados e muito menos colocados como análogos. Contudo, há uma necessidade real de agradar ao público dessas bandas: opta-se, então, por ficar no limite do aceitável (uma venda nos ombros de Yoko e de Lennon; um corpo feminino com um escorpião; ou ainda uma cruz cravejada de caveiras). O recurso à imagem, ao visual, torna-se imprescindível para o escapismo do estranho familiar que nos habita. O rock, como vanguarda artística, também esteve à mercê da vendagem, do que o mercado (e o mundo pós-guerra) poderia absorver em tempos difíceis (guerra fria, ditadura militar no Brasil, diversos movimentos socioculturais pelo mundo). Nada de santa ceia sangrenta nem coisas de terror. O mercado à procura de consumo engole as vivências e as ideologias pelas quais os jovens se projetam como pessoas ora contrapondo ora afirmando-se. Seja como for: “I want you”.
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