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A pianista que comoveu Stálin

Patrick Paiva de Oliveira

Entre os interlocutores de Bakhtin e os membros de seu Círculo, nós não encontraremos somente poetas, homens das letras, filósofos e linguistas, mas também cientistas, biólogos, pintores, escultores, músicos e musicólogos. (CASSOTTI, 2010, p. 114, tradução nossa)

Ao iniciar os estudos sobre Bakhtin e seus pares, não imaginara que os ecos e ressonâncias musicais fossem tão marcantes em suas produções. Muitos conceitos essenciais ao desenvolvimento do pensamento bakhtiniano foram metaforizados pelo Círculo e transportados da esfera musical para os estudos da linguagem por constituírem a “designação mais adequada”.

Citemos, por exemplo, tonalidade, passagem, contraponto, voz(es), entoação, consonância, dissonância, ritmo, homofonia e polifonia. Este último, amplamente desenvolvido na obra Problemas da Poética de Dostoiévski (PPD) como atesta o excerto

 A essência da polifonia consiste justamente no fato de que as vozes, aqui, permanecem independentes e, como tais, combinam-se numa unidade de ordem superior à da homofonia. E se falarmos de vontade individual, então é precisamente na polifonia que ocorre a combinação de várias vontades individuais, realiza-se a saída de princípio para além dos limites de uma vontade. Poder-se-ia dizer assim: a vontade artística da polifonia é a vontade de combinação de muitas vontades, a vontade do acontecimento. (BAKHTIN, 2013, p. 23)

 Os membros do Círculo de Nevel – Vitebsk – Leningrado interessavam-se por diversas manifestações artísticas, científicas e filosóficas; compartilhavam seus interesses nas chamadas “tardes filosóficas”, nas quais também encenavam peças teatrais, recitavam poemas e assistiam à execução de peças musicais.

Dentre eles, podemos citar alguns que estavam diretamente ligados a atividades musicais: Volochínov, que foi professor do Conservatório de Música de Vitebsk, dava aulas e publicou diversos trabalhos sobre história da música; Sollertinsky[1] – amigo próximo do compositor russo Shostakovich – que fora considerado o mais importante crítico soviético de música e teatro dos anos 1920 e 30 e sua monografia sobre o compositor austríaco Gustav Mahler é discutida até hoje devido ao seu caráter polêmico; e também uma das maiores pianistas dessa geração, a quem dedicaremos maior destaque neste texto: Maria Veniaminovna Yudina.

Yudina (1899 – 1970) nasceu em Nevel e faleceu em Moscou. Iniciou seus estudos formais em música no Conservatório de São Petersburgo com a renomada pianista Anna Essipova e figura entre seus mais importantes alunos. Formou-se em 1921 no Conservatório de Petrogrado e logo ingressou no corpo docente do conservatório compartilhando a prática docente com a atividade de concertista. Era considerada excêntrica por recitar poesias censuradas em seus recitais como forma de apoiar os poetas de sua época. Também a chamavam “missionária da música” por executar composições de seus contemporâneos: Shostakovitch, Krenek, Hindemith, Bartok, Stravinsky, Prokofiev e, mais tarde, Stockhausen.

Clark & Holquist (p. 129) confirmam que

 No zelo de difundir a luz, dava quase sempre palestras antes de iniciar os concertos e, se o auditório não reagia corretamente a uma determinada peça, com frequência ela o repreendia e voltava a tocá-la de novo, de modo a oferecer-lhe a oportunidade de responder melhor[2].

Yudina toca Prokofiev

 Um fato marcante na carreira de Yudina se deu quando Stálin, após ouvir uma execução do Concerto para piano e orquestra n.º 23 em Lá Maior (K. 488), de Mozart, na rádio local, gostou tanto da interpretação que telefonou para a emissora e solicitou que lhe fosse enviada uma cópia do disco que fora executado. Porém, a execução por Yudina fora realizada ao vivo e não havia registro fonográfico da performance. De imediato, todos os músicos foram convocados para realizar tal gravação e Yudina assim o fez, permanecendo sempre serena e tranquila. Em contrapartida, Stálin enviou uma boa quantia de dinheiro à pianista, que o doou à Igreja e devolveu o agradecimento ao estadista com as seguintes palavras: “Vou rezar pelo senhor dia e noite e pedir a Deus que lhe perdoe os grandes pecados perante o povo e o país que o senhor cometeu”. Todos esperaram que após o fato, Yudina fosse presa, mas isso não ocorreu. Segundo o livro de memórias de Shostakovich, quando Stálin foi assassinado, em sua residência, em Moscou, por sionistas, no dia 5 de Março de 1953, o disco gravado por Yudina estava girando em seu toca-discos. Por isso, é considerada[3] a “pianista que comoveu Stálin”. Podemos ouvir a gravação no YouTube:

 Há uma coleção de CDs, denominada “Great Pianists of the 20th Century”, na qual há dois números dedicados a Maria Yudina. Neles, a pianista executa obras de Bach e Beethoven e é aclamada pela crítica como uma das melhores intérpretes de ambos. No site Amazon.com, há mais de 100 CDs com gravações da pianista, que gravou durante toda sua vida obras de compositores clássicos e contemporâneos seus. Sua última gravação foi dois anos antes de sua morte.

No site do Conservatório de São Petesburgo (http://istud.conservatory.ru/), Yudina figura entre os melhores performers de sua época e é destacada, novamente, pelo apoio aos compositores contemporâneos.

Aos que desejarem ampliar seus conhecimentos sobre Yudina, recomendo o seguinte documentário russo com legendas em inglês:

 Muitas vezes, não conhecemos bem todos os membros do Círculo e apresentar alguém tão expressivo como Yudina é fundamental para pensar sobre as concepções advindas do universo musical para o escopo dos estudos da linguagem, mais que como meras metáforas, pois, sem noções musicais, perdemos parte da compreensão da filosofia proposta por esses pensadores. Este texto é um convite a conhecer e pensar a filosofia bakhtiniana a partir e por meio de Yudina.

Referências

CASSOTTI, R. S. Music, Answerability, and Interpretation in Bakhtin’s Circle: Reading together M.M. Bakhtin, I.I. Sollertinsky, and M.v. Yudina”, in Orekhov, B.V. Chronotope and Environs, Fetschift N. Pan’kov, Ufá, Vagant, 2010, pp. 113-120.

BAKHTIN, M. Problemas da Poética de Dostoiévski. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.

[1] BUTIR, L.M.; DANKO, L. G. Sollertinsky, Ivan Ivanovich. Grove Music Online. Oxford Music Online. Oxford University Press. Acesso em:  07/07/14. Disponível em: http://www.oxfordmusiconline.com/subscriber/article /grove/music/26150.

[2] CLARK, Katerina; HOLQUIST, Michael. Mikhail Bakhtin. Tradução de J. Guinsburg. São Paulo: Prespectiva, 2004.

[3] VATH, Cristopher. The pianist who moved Stalin. Disponível em <http://www.crossroadsculturalcenter.org/events/2011/9/17/maria-yudina-the-pianist-who-moved-stalin.html&gt; Acesso em: 14/09/14.

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