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A moda de viola futurista: “Dois mil e um”

Rafael Marcurio da Cól

Antes de começar o texto, convido o leitor a ouvir a canção que será o foco desta reflexão:

“2001 (Dois Mil e Um)

Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia

Eu quase posso palpar, a minha vida que grita Emprenha e se reproduz, na velocidade da luz A cor do céu me compõe, o mar azul me dissolve A equação me propõe, computador me resolve

Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia

Amei a velocidade, casei com 7 planetas Por filho cor e espaço, não me tenho nem me faço A rota do ano luz, calculo dentro do passo Minha dor é cicatriz, minha morte não me quis

Nos braços de 2000 anos, eu nasci sem ter idade Sou casado, sou solteiro, sou baiano, estrangeiro Meu sangue é de gasolina, correndo não tenho mágoa Meu peito é de sal de fruta, fervendo num copo d’água

Astronauta libertado Minha vida me ultrapassa Em qualquer rota que eu faça Dei um grito no escuro Sou parceiro do futuro Na reluzente galáxia” (1969)

Link para ouvir a canção no youtube: 

A canção “2001”, de autoria de Rita Lee e Tom Zé, compõe o álbum Mutantes (1969), da banda Os Mutantes e essa canção é tida, aqui, como mote de uma reflexão sobre o embate caipira e futurista que compõe a temática da canção, tanto no que concerne à letra quanto ao que se refere à música. Tal síncrese é um exemplo do estilo do grupo. A questão do estilo antropofágico d’Os Mutantes é foco da pesquisa desenvolvida no projeto de Iniciação Científica proposto por mim e sob orientação da Profª Dra. Luciane de Paula entre os anos de 2011 e 2013.

No álbum em que “2001” se encontra, a banda tem mais composições e maior contato com músicos tropicalistas. Como a grande maioria das canções do álbum, essa traz uma mescla entre o estilo antropofágico tropicalista e uma versão brasileira da toada dos Beatles, pois engloba arranjos, letras e melodias que navegam entre esses dois universos e, mais que isso, coloca-os em diálogo numa mesma canção. Em “2001”, isso aparece de maneira marcante, pois chega a ser antagônica a mistura do rock proposto pela banda, com uma toada caipira, que dispõe da adesão do registro “caipira”, por meio da entonação, da reprodução forçada dos erres de modo geral, além dos solos de viola caipira e da segunda voz desempenhada por Tom Zé – ao estilo dupla de moda de viola. Apesar de ser um ritmo musical brasileiro, junto com ele, a importação do rock beatlemaníaco, aliada à postura irreverente performárica dos músicos faz toda a diferença na concepção e na execução da canção – o que constrói uma outra imagem de música brasileira. Esse é o ponto a ser pensado aqui.

A canção “2001” demonstra como a Tropicália modificou o modo de fazer canção d’Os Mutantes, principalmente se se levar em consideração o começo da carreira desse grupo, para o segundo LP. Apesar da resistência, devido a alguns dogmas da própria banda, Rita Lee é a responsável por introduzir os ritmos nacionais às canções, por ter tido maior contato com os Tropicalistas, além de adequar, aos poucos, a banda à proposta neo-antropofágica que veio a caracterizá-la.

Em “2001”, o tema é futurista e nacional ao mesmo tempo, dada a introdução do caipira, tradicional personagem da cultura brasileira, dentro de um livro de ficção científica, totalmente desconectado da vida no campo. Em contrapartida, a moda futurista d’Os Mutantes reflete a suposta vida do caipira de 2001 no espaço e compõe uma paródia do movimento caipira, visto como a “raíz” antiquada brasileira, especialmente se se considerar a imagem lobatiana preconceituosa do Jeca Tatu. Dentre os embates travados na canção,  alguns elementos contraditórios se destacam como constitutivos da temática da canção, tais como: o velho e o novo, o rock e o sertanejo, o nacional e o global, contrastantes encontrados tanto na letra quanto no arranjo musical da canção. A forma abriga a temática e constitui o estilo d´Os Mutantes.

O gênero canção é constituído por, pelo menos, letra e música. As canções tropicalistas, em específico, possuem arranjos elaborados, com maior instrumentação. A música (arranjo) sustenta a letra, no caso de “2001”, como se a letra fosse contaminada não só pela melodia e entoação do interprete, como também pelo arranjo, que funciona como elemento essencial de sua composição, por isso, o seu destaque ao seu papel na análise em questão.

A primeira estrofe é o refrão da canção e pode ser vista como uma premissa de como seria a música caipira em 2001. Com os avanços tecnológicos, a vida no campo seria ampliada para o espaço. Por isso, ao invés de um pião, tem-se um “astronauta libertado” no infinito universo como sujeito caipira-futurista da canção. Durante a impostação de cantor de rock, é possível observar as novidades previstas para o ano de 2001, coisas mirabolantes como: o fim da morte, dentre outras coisas. Enquanto o caipira está no espaço, perdido no tempo, vivendo em outro planeta.

O ritmo da canção se intercala (fica entre uma toada caipira e uma balada de rock) e embala uma paródia de moda caipira. A introdução e o primeiro refrão da canção são em ritmo caipira, com direito a instrumentos típicos, como viola, sanfona e chocalho, além de contar com a impostação vocal de Rita Lee, que remete a um cantor de música caipira, acompanhada pelo músico e compositor Tom Zé, que faz a segunda voz, constituindo assim uma dupla de rock-caipira.

Depois de cantar duas partes da canção com o ritmo de rock, tem-se uma “virada psicodélica”, na qual os papeis são invertidos: a moda caipira toma conta da terceira parte da canção. Em seguida, o refrão é cantado e nas últimas três estrofes acontece a simbiose entre os ritmos. Nesse momento, é possível observar a síncrese dos dois elementos cancioneiros em um só momento da canção (e isso será aperfeiçoado nos LP’s seguintes, em outras canções). No campo da interação letra e música, a canção contrasta vários elementos que podem ser vistos como paradoxais, mas se unem em uma única harmonia, pois, apesar das alternâncias no decorrer da canção, o campo harmônico não muda, uma vez que as tensões são estabilizadas, o que demonstra o projeto estilístico da banda. Esta, por meio da antropofagia lítero-musical, reconstrói a música popular brasileira, com a sua marca autoral.

Pode-se observar que, na canção, utiliza-se o registro caipira e algumas mudanças fonéticas ficam marcantes durante, principalmente, o refrão. Por isso, segue a escansão das duas frases enunciativas que o constituem. Nela (na escansão), percebe-se que os fones/tonemas grafados representam os alofones atualizados na entoação da canção em questão, os demais seguem o padrão fonológico da língua portuguesa, entretanto, carregados pela cadência da fala caipira:

No primeiro refrão: 1ª frase:


frase 1 e 2

Na primeira frase é possível encontrar a palavra /as.tro.’naɽ.ta/, a qual é entoada com o erre retroflexo no lugar da semivogal [ w ], num processo de consonantização. Na palavra /kwal.’kɛ/ há a apócope da consoante retroflexa [ ɽ ], o que também remete à oralidade do universo caipira. Na segunda frase, observa-se a opção pelo “erre” retroflexo na palavra /’paɽ.’cei.ɾɔ/, em evidência pelos intérpretes exatamente para confirmar a fala do caipira futurista e a palavra /ga.’la.ʃa/ que sofre uma monotongação, marcando o modo caipira de se falar a língua portuguesa.

Com os exemplos citados acerca das adequações fonéticas feitas ao entoar essa canção, pode-se perceber as pronúncias dos demais erres durante todo o refrão e ao longo da canção. Essas ênfases simbolizam o tom paródico da canção, a irreverência da banda ao tratar do que seria “atraso” (o caipira como símbolo do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato), colocado no futuro (em 2001), com síncrese entre o nacional popular e o global internacional, futurista. Em outras palavras, o caipira simboliza o Brasil. O Brasil “país do futuro” visto com o humor ácido da banda que traz a guitarra dos Beatles junto com elementos caseiros fabricados pela família do grupo, numa entoação “nacional” típica.

Todos os fenômenos analisados são típicos do registro caipira e contribuem para a construção da canção. Esses fenômenos fonêmicos constatados são típicos da oralidade e marcam um grupo social específico, já citado por várias vezes nesse texto, o caipira, muitas vezes inferiorizado por ser considerado “atrasado”. A paródia feita pelos Mutantes relativiza o preconceito sarcástico ao valorizar a cultura caipira e os traz para a cena de maneira inovadora, sendo esta uma das propostas da Tropicália: uma simbiose entre a cultura nacional e a exterior. Num primeiro momento, não são todas e quaisquer culturas nacionais, são as renegadas que ganham destaque, exatamente para permitir que o público conheça a própria cultura, além do canônico samba e bossa-nova.

Os fenômenos fonêmicos, junto com a repetição da entoação, colaboram com a musicalidade da canção, facilitando a fixação da letra. Os registros fonéticos demonstram a variedade oral da língua e isso fica claro na entoação performática dos cantores que utilizam três registros (alofones) diferentes para o mesmo fonema, representando a variação de cada região. Isso fica marcado na canção quando se muda o registro do caipira para o cantor de rock. O [ ɽ ] retroflexo do caipira é muito mais intenso do que o utilizado no rock, marcado, na maior parte das vezes, pelo [ɾ] alveolar. Na terceira vez que o refrão é cantado há a predominância do [ɾ] alveolar em quase todo o refrão, com exceção do [r] vibrante da palavra “reluzente”. Assim como há de duas a três vozes na canção, há de dois a três registros distintos atualizados na pronúncia entoativa do “erre”, símbolo da presença de dois a três grupos sociais diferentes, em convívio, na canção e na cultura brasileira.

O “erre” retroflexo é bem marcado, talvez, por revelar o preconceito linguístico com relação ao grupo que o utiliza, pois o identifica como aquele que se encontra distante e, muitas vezes, às margens da sociedade, o que é criticado na canção por meio da ironia paródica. A  negação do nacional e aceitação do que vem do exterior de forma passiva e pasteurizada é colocada em cheque pela banda ao trazer para o centro da cena essa variante linguística. A acidez e comicidade são armas utilizadas pelo grupo para questionar valores estereotipados estabelecidos e fazem isso, em 2001, também por meio da sua exaltada interpretação vocal.

Outra questão a ser destacada é a participação de Tom Zé na segunda voz durante a toada caipira e a de Arnaldo que, por algumas vezes, assume a primeira voz. Uma característica recorrente da banda é a de não ter um vocalista fixo, uma vez que, Rita e Arnaldo estão sempre invertendo os vocais. Isso dá à banda um elemento diferencial e exótico, visto que traz dois timbres e tessituras distintas (homem/mulher) cantando a mesma melodia embalada pela mesma harmonia. Metaforicamente, pode-se pensar nessa característica como um caleidoscópio dentro de uma única canção, pois, como um prisma, consegue-se escutar mais de uma constituição/variação de banda, o que leva à visualização de imagens diferentes que podem ou não se repetir ao longo da canção ou até mesmo de sua obra.

A melodia da primeira, da segunda e da terceira parte da canção se resume à repetição de uma mesma frase melódica, mesmo com a entrada de Arnaldo, não só como segunda voz, sempre ao final de cada parte, seguido de uma vocalização. Depois da primeira parte, Rita Lee e Tom Zé voltam a cantar o refrão pela segunda vez. Após a execução do segundo refrão, verifica-se a presença de elementos psicodélicos, como: efeitos de sonoplastia de buzinas, o sintetizador e vocalizações distorcidas, que remetem a uma “viagem”. Na terceira parte há o retorno à entoação caipira.

Num primeiro momento, a melodia da canção é descendente e, no final da frase, ascendente. Além de conter dois intervalos grandes de oitava diminuta (8ª d), as partes são formadas de duas frases que têm a mesma harmonia e melodia, como se pode ver na escanção:

1ª Frase:


refrão

Observa-se que as partes de ascendência melódica, destacadas em itálico na escanção, são os momentos em que Arnaldo assume a primeira voz, presente tanto na primeira quanto na segunda frase. Até, entre as frases, o desenho melódico é o mesmo, com a alteração da letra. A terceira parte é a única destacada, pois há a mudança para o registro caipira e os refrões do final são entoados como variantes do cantor de rock. Nesse momento, ocorre a mistura entre as duas performances, o que se aproxima do que se pode chamar de estilo antropofágico.

Antes da mistura acontecer, tem-se a seguinte fala: “Tá ficando bão, né? Barbaridade, uai!”, por meio do registro caipira os interpretes aprovam a mistura antropofágica cancioneira proposta que ao longo do LP será desenvolvida. Ao longo da canção, o rock e o sertanejo estão separados e, ao final, unem-se numa síncrese antropofágica, ao tratarem do tema futurista da letra com tons e variações nacionais.

Na interação letra e música, é possível perceber o elemento paradoxal colocado pela banda: a quebra da distancia entre as pessoas que só gostam de rock e as que só gostam de canções caipiras. Dessa forma é que Os Mutantes conquistam o reconhecimento de sua presença no cenário nacional, no primeiro festival da canção da TV Record. Com a mistura de ritmos e vozes, uma performance bem humorada, a acidez paródica e irônica de suas canções, Os Mutantes fincavam e fincaram os pés no cenário nacional da canção brasileira, garantindo seu nome da história – ao se falar de música brasileira, Os Mutantes são uma referência, dentre tantos outros nomes, tão expressivos quanto os deles.

Em suma, pode-se considerar a canção “2001” como um divisor de águas na trajetória da banda, pois, a partir dela, a banda começa a compor canções com uma mistura cada vez maior da cultura popular com o rock.  Com ela, a banda alcança o reconhecimento da crítica e do público. Efetivamente, Os Mutantes transformaram o modo como o rock do exterior reverberava dentro da cultura popular brasileira, encontrando um tom nacional para o mesmo, sem perder sua essência. Por isso, são conhecidos e chamados de “precursores do rock nacional”.

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