Aline do Prado Aleixo Soares e Luciane de Paula
“Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é viver, mesmo” (Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa)
“A vida humana só acontece uma vez e não poderemos nunca verificar qual seria a boa ou a má decisão, porque, em todas as situações, só podemos decidir uma vez. Não nos é dada uma segunda, uma terceira, uma quarta vida para que possamos comparar decisões diferentes” (A insustentável leveza do ser, Milan Kundera)
Em A insustentável leveza do ser, lemos, em suas diversas (e frequentes) digressões, ideias acerca da vida que não se repete: a vida, essa mesma, que todos nós vivemos e que é semiotizada no romance de Kundera, por meio de suas personagens. Essa vida é descrita, no romance, por meio de um discurso ambíguo que parte do narrador, como sendo pesada e, ao mesmo tempo, leve. Essa contradição eterna se estende à vida de cada um, de cada sujeito, responsável, na acepção bakhtiniana do termo, já que a arte e a vida são duas instâncias que dialogam em suas constituições. A arte, segundo as ideias do Círculo, só adquire sentido quando incorporada, pelos sujeitos responsáveis que a experimentam, às suas vidas e passam, assim, a formar uma unidade com ela. Contraditoriamente. Como o ser humano o é: eufórico e disfórico, entusiasta e depressivo, amoroso e detestável, crítico e submisso, resistente e entregue…conflituoso (e) complexus. Esse ser humano só vive, com todas as suas mazelas e ideais, quando trans-formado em linguagem. A linguagem o constitui tanto quanto ele constitui a linguagem. Por meio dela (e só por meio dela) sua existência passa a fazer sentido. Sentido enunciado sentido. Apenas na linguagem, o ser existe como sujeito. Não um sujeito qualquer, mas um sujeito ativo. Em atividade enunciada responsiva. Sujeito como pensado por Bakhtin: sem álibi na existência. Isto é, consciente de seus atos e, portanto, indesculpável. Sujeito que deve arcar com a responsabilidade de viver. E, pior, viver bem; bem viver. O que eu faço vai de encontro ao e ao encontro do que outros fizeram, fazem e farão: os meus atos possuem consequências e eles são, querendo ou não, responsabilidade minha. Afinal, é na interação entre os diversos sujeitos que esses se constituem. O diálogo entre mim e o outro (todos os outros: o que existe em mim e os externos) é que constitui os sujeitos, já que sozinhos somos incompletos: falta a mim o excedente de visão, que apenas o outro tem, de mim e outros-outros. Excedente que permite a ele – e somente a ele – me ver com completude. Se somos, então, conscientes e responsáveis por nossos atos, ainda que incompletos e inacabados, em constante processo de vir-a-ser, como saber de que maneira responder à vida, numa existência em construção, que não se sabe viver exatamente porque processo de nossos atos e não produto a ser contemplado de fora? Os meus atos têm consequências não só para mim, mas também – e isso é o que parece tornar a vida mais difícil – para o outro. Como saber viver, se a vida que vivemos uma única vez é esse eterno ensaio em concretização e sem rascunho de uma obra que se quer prima ao mesmo tempo em que o seu projeto de dizer se encontra em formação? Essa é a leveza e ao mesmo tempo o peso da vida: só se vive uma vez. E isso implica, justamente, em duas coisas: como não podemos saber viver, tudo o que fazemos parece ser desculpado, destituído da responsabilidade de antemão – daí a leveza; e como devemos saber viver, ou seja, devemos escolher um caminho, tomar decisões, o peso da escolha e da responsabilidade recai, inevitavelmente, sobre os nossos atos, uma vez que temos consciência, no processo da vida, do que é ético e do que não é; do que queremos para nós e para os outros e do que não queremos e não devemos fazer. Nesse sentido, os nossos atos nos aprisionam e, ao mesmo tempo, libertam. Atos de linguagem, já concretos desde a raiz, em pensamento. Afinal, se somos seres enunciados, seres de linguagem, semiotizados, a expressão de nossos anseios já re-vela nossa representatividade e, portanto, nos liberta de determinadas amarras e nos enlaça em outras correntes. Seja como for, a vida, inacabada, é reflexo e refração humana. Causa e consequência de nossos atos. Também linguagem em construção junto com os sujeitos. História em percurso. E, por isso, sempre, peso e leveza. Viver-se. Perigo de se ser, sendo-se. E assim, é. Já foi e será. Impossível querer apenas uma ponta, a delícia da leveza que liberta e libera. Somos viventes em construção como a vida se constrói em nós. Nós, não laços. Apertados e sufocantes, às vezes. Outras, brandos e frouxos. Diálogo entre vidas que se tecem em conjunto, de retalhos, por fios translúcidos, ao mesmo tempo, frágeis e flexíveis. Fios-bambus, difíceis de serem rompidos, mas, uma vez a ruptura realizada, jamais um remendo pode fazer fluir o ponto como outrora. Nesse sentido, somos todos moiras da linguagem cosendo-a, sem saber ao certo o que tricotamos, tendo como fim aprender-viver na vida que nos torna e já-é vir-a-ser. Esse é o deleite humano: ser sem ter sido. Essa também (é) a sua contenção: responder por seu fazer sem saber exatamente onde o rio da vida vai desembocar. Ainda que, no fim, todos saibamos: tecido findo, ponto final colocado, não mais espaço para se enunciar…morte do sujeito, morte do homem. A leveza da vida recém-nascida se transforma com o peso da responsabilidade de vivê-la e bem. Peso que se quer leve, bem viver e que é constante, sempre a balizar todas as nossas de-cisões, os nossos atos responsáveis e responsivos. Como apender a viver com o peso da responsabilidade? Vivendo. Sem álibi da existência. De maneira leve e pesada, livre e enlaçada nas tramas tecidas full time por todos nós. E, com isso, aprender a viver, vivendo. Aprender que os atos são repercussão de outros atos, proprios e de outros, ontem, hoje e amanhã. E assim, a vida segue sendo tecida pelos sujeitos que nela vivem e a bordam. Mesmo sem que saibamos o que está por vir, devemos, inevitavelmente, encarar a responsabilidade dos nossos atos. Esse é o não-álibi no viver. Sua delicadeza e, como cantaria Caetano (“Dom de Iludir”), a “delícia de ser o que é”. Afinal, “Eu tentei compreender a costura da vida / Me enrolei porque a linha era muito comprida / E como é que eu vou fazer para desenrolar?” (“Costura da vida”, Interior – A 4 vozes). Desenrolar enrola. E enrolar dá (em) nó(s). Não há compreensão apenas mental da vida. Compreendê-la pede ato ou, como diria Clarice (Lispector), “Viver ultrapassa todo o entendimento”.
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