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A bivocalidade polêmica em Diário do hospício, de Lima Barreto: fragmentos de uma análise prévia

José Radamés Benevides de Melo[1][2][3]


1 Introdução[4]

               Ao construir sua identidade de escritor literário, Lima Barreto passa a polemizar com a literatura de prestígio de sua época. Ao ser internado no Hospital Nacional dos Alienados, passa a polemizar com a psiquiatria então praticada. Isso não nos impede, no entanto, de dizermos que, mesmo tendo uma vida conturbada, ele deixou um grande legado, do qual se destacam Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Marcadamente dialógicos, esses enunciados estabelecem diálogos com diversas vozes sociais; dentre elas, as da literatura e as da ciência de sua época.

               É a partir da leitura de Diário do hospício e dos postulados teóricos do Círculo de Bakhtin, que estabelecemos o objetivo de investigação deste artigo: apresentar parciais de uma análise prévia da bivocalidade polêmica da narrativa em questão. Assim, para atingir esse objetivo, procedemos à análise: 1) da polêmica aberta estabelecida entre o discurso de Lima Barreto e o discurso da ciência psiquiátrica de sua época e 2) da polêmica velada entre a fala limabarretiana e outras falas literárias do início do século XX expressa, na relação forma-conteúdo, por meio de seus enunciados. Para proceder à análise ora proposta, os postulados teóricos do dialogismo e a noção de discurso bivocal (no que concerne às polêmicas aberta e velada), tal como apresentados por Bakhtin (2010), fundamentam a análise.

2 O discurso bivocal[5]

            Não é nosso objetivo, nesta seção, descrever e comentar todo o capítulo que Bakhtin dedica ao estudo do discurso em Dostoiévski, mas apenas aquilo que, por razões teóricas e analíticas, interessam ao desenvolvimento do que propomos neste artigo. Por isso, entendemos ser importante explicitar nossa compreensão do percurso feito pelo pensador russo que vai desde a assunção do ângulo dialógico até a definição de polêmica aberta e polêmica velada. Isso não quer dizer que, no momento das análises, quando for necessário, não recorreremos ao que é dito ao longo de todo o capítulo ou mesmo de outras obras do círculo, mas apenas que estamos situando nossas reflexões sobre o discurso bivocal considerando somente o que é dito sobre essa modalidade de discurso no trecho a ela dedicado por Bakhtin (2010) em Problemas da poética de Dostoiévski.

           Bakhtin dedica o quinto e último capítulo de Problemas da poética de Dostoiévski à análise do discurso na obra do romancista russo. Intitulado O discurso em Dostoiévski, apresenta quatro seções, cujos títulos são, respectivamente, de 1 a 4: Tipos de discurso na prosa. O discurso dostoievskiano, O discurso monológico do herói e o discurso narrativo nas novelas de Dostoiévski, O discurso do herói e o discurso do narrador nos romances de Dostoiévski e O diálogo em Dostoiévski. Ao longo do capítulo, Bakhtin realiza, como faz, aliás, em todo o livro, um minucioso estudo das relações dialógicas e de sua realização nas obras de Dostoiévski, especialmente nas novelas e nos romances[6]. O capítulo começa com uma pequena, mas fundamental, seção, cujo título é “Algumas observações metodológicas prévias”. É nessa seção que Bakhtin esclarece ao leitor que os princípios que orientam suas análises não são advindos da linguística nem da estilística, que, para ele, apresentavam limitações no que diz respeito às investigações do estilo, da paródia e do skaz. É também aí e por isso que ele situa suas reflexões no âmbito da metalinguística, “subtendendo-a como um estudo – ainda não constituído em disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da linguística” (BAKHTIN, 2010, p. 207). Nesse ato de extrapolar os limites impostos pelos estudos linguísticos, Bakhtin assume o ângulo dialógico como princípio orientador e fundamental de suas reflexões e é ele mesmo quem o diz:

Mas é precisamente esse ângulo dialógico que não pode ser estabelecido por meio de critérios genuinamente linguísticos, porque as relações dialógicas, embora pertençam ao campo do discurso, não pertencem a um campo puramente linguístico do seu estudo.

As relações dialógicas (inclusive as relações dialógicas do falante com sua própria fala) são objetos da metalinguística. (BAKHTIN, 2010, p. 208)

          A assunção do ângulo dialógico leva Bakhtin a assumir as relações dialógicas como objeto de estudo e de pesquisa da metalinguística, o que já está posto na citação acima, mas que fica ainda mais evidente no fragmento que segue:

Assim, as relações dialógicas são extralingüísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. (BAKHTIN, 2010, p. 209)

       No seu posicionamento frente à linguística, Bakhtin afirma que

As relações dialógicas são irredutíveis às relações lógicas e concreto-semânticas, que por si mesmas carecem de momento dialógico. Devem personificar-se na linguagem, tornar-se enunciados, converter-se em posições de diferentes sujeitos expressas na linguagem para que entre eles possam surgir relações dialógicas. (BAKHTIN, 2010, p. 209)

              Depois disso, no fim dessa breve seção, é-nos apresentado o objetivo do capítulo que ora comentamos: “O objetivo principal do nosso exame, pode-se dizer, seu herói principal, é o discurso bivocal, que surge inevitavelmente sob as condições da comunicação dialógica, ou seja, nas condições da vida autêntica da palavra.” (BAKHTIN, 2010, p. 211). Nas linhas seguintes, Bakhtin apresenta uma distinção minuciosa de três tipos de discurso: o primeiro deles diz respeito ao “que nomeia, comunica, enuncia, representa –, que visa à interpretação referencial do objeto”; já o segundo é chamado de

[…] discurso representado ou objetificado (segundo tipo). O tipo mais típico e difundido de discurso representado e objetificado é o discurso direto dos heróis. Este tem significação objetiva imediata, mas não se situa no mesmo plano ao lado do discurso do autor, e sim numa espécie de distância perspectiva em relação a ele. Não é entendido do ponto de vista do seu objeto, mas ele mesmo é o objeto da orientação como discurso característico, típico, colorido. (BAKHTIN, 2010, p. 213-214)

         A esses dois tipos de discurso Bakhtin chama de discursos monovocais. Já o terceiro tipo de discurso é aquele em que “ocorrem duas orientações semânticas, duas vozes.” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Acrescenta ainda o pensador russo o seguinte: “As palavras do outro, introduzidas na nossa fala, são revestidas inevitavelmente de algo novo, da nossa compreensão e da nossa avaliação, isto é, tornam-se bivocais.” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Em sua complexa classificação, cujo princípio é a alteridade (relação com o discurso do outro), dos discursos bivocais, Bakhtin chega a três subtipos: 1) o discurso bivocal de orientação única; 2) o discurso bivocal de orientação vária; e 3) o tipo ativo (discurso refletido do outro). Nesse último subtipo, situam-se: a) a polêmica interna velada; b) a autobiografia e confissões polemicamente refletidas; c) qualquer discurso que visa ao discurso do outro; d) a réplica do diálogo; e) o diálogo. Assim se refere Bakhtin ao tipo ativo: “O discurso do outro influencia de fora para dentro; são possíveis formas sumamente variadas de inter-relação com a palavra do outro e variados graus de sua influência deformante.” (BAKHTIN, 2010, p. 229).

           Aqui, retomamos Estética da criação verbal para lembrar uma passagem de O autor e a personagem na atividade estética, em que, falando da forma espacial da personagem, Bakhtin afirma:

De fato, nossa situação diante do espelho é sempre meio falsa: como não dispomos de um enfoque de nós mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um outro possível e indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos a partir do outro; também aqui tentamos vivificar e enformar a nós mesmos a partir do outro; daí a expressão original e antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida. (BAKHTIN, 2011, p. 30)

               Podemos dizer que o que está dito nos comentários acerca do discurso bivocal (tipo ativo/discurso refletido do outro) em muito se assemelha ao ato de, estando sozinhos, olharmo-nos no espelho no intuito de nos autocontemplar. Inevitavelmente, o outro constituirá esse momento, mesmo que não esteja presente, que há pouco tenha se retirado do recinto, que há anos não tenha dado a graça de sua presença. O autocontemplar-se do sujeito é um ato atravessado pela alteridade, “daí a expressão original e antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida”. Assim acontece também com o discurso de tipo ativo (refletido do outro); embora o discurso do outro não esteja presente por meio de palavras, enunciados, acentos, tons, etc., embora no discurso do sujeito, esse discurso outro, a palavra do outro permaneça

[…] fora dos limites do discurso do autor, […] esse discurso [o do autor] a leva em conta e a ela se refere. Aqui, a palavra do outro não se reproduz sem nova interpretação, mas age, influi e de um modo ou de outro determina a palavra do autor, permanecendo ela mesma fora desta. Assim é a palavra na polêmica velada e, na maioria dos casos, na réplica dialógica. (BAKHTIN, 2010, p. 223-224)

         É nesse âmbito do discurso de tipo ativo que se situa a polêmica interna velada. Nessa polêmica,

[…] o discurso do autor está orientado para o seu objeto, como qualquer outro discurso; neste caso, porém, qualquer afirmação sobre o objeto é construída de maneira que, além de resguardar seu próprio sentido objetivo, ela possa atacar polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto. (BAKHTIN, 2010, p. 224)

             Neste ponto, poderíamos estabelecer uma relação no interior da esfera de atividade literária entre os escritos parnasianos, pensemos na Profissão de fé, de Olavo Bilac, quanto à literatura e em Inverno em flor, de Coelho Neto (1864-1936), quanto à literatura e à loucura, por exemplo, e os escritos de Lima Barreto. Inverno em flor funcionaria muito mais como um porta-voz do discurso da psiquiatria de sua época do que Diário do hospício, de Lima Barreto. Referindo-se à loucura e à psiquiatria, Lima, na dinâmica da esfera literária, se contrapõe ao posicionamento adotado por Coelho Neto em Inverno em flor, tanto no que diz respeito às formações verbo-axiológicas quanto no que se refere ao discurso que se faz sobre a loucura e a psiquiatria. O discurso de Lima não apresenta no seu interior réplicas dialógicas a intervenções que, por ventura, viessem de seu outro, por exemplo, de Coelho Neto. No entanto, esse outro discurso está apenas subentendido e, “orientado para o seu objeto (a literatura, a loucura, a psiquiatria), o discurso se choca no próprio objeto com o discurso do outro.” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Como afirma Bakhtin (2010, p. 224), “este último não se reproduz, é apenas subentendido” a tal ponto que “a estrutura do discurso seria inteiramente distinta se não houvesse essa reação ao discurso subentendido do outro.” É ainda sobre essa modalidade de polêmica que Bakhtin (2010, p. 224) assevera que

[…] na polêmica velada o discurso do outro é repelido e essa repelência não é menos relevante que o próprio objeto que se discute e determina o discurso do autor. Isso muda radicalmente a semântica da palavra: ao lado do sentido concreto surge um segundo sentido – a orientação centrada no discurso do outro.

           De fato, não vemos, em Diário do hospício, as palavras, os enunciados, fragmentos do discurso parnasiano[7], mas podemos perceber que, em relação aos discursos hegemônicos que circulavam na esfera literária naquele momento, o discurso construído na narrativa de Lima Barreto, que aqui tomamos como corpus de investigação, não segue os princípios orientadores das formações verbo-axiológicas das obras parnasianas ou simbolistas. Em outras palavras, o discurso parnasiano é repelido, mas essa repelência é importante porque determina o discurso do autor, o que muda, como diz o próprio Bakhtin, radicalmente a semântica da palavra, já que ao lado de seu sentido concreto, surge um segundo sentido, que, aqui compreendemos, polêmico. Por isso, não podemos compreender de “modo completo e essencial esse discurso, considerando apenas a sua significação concreta direta. O colorido polêmico dos discursos manifesta-se em outros traços puramente linguísticos: na entonação e na construção sintática.” (BAKHTIN, 2010, p. 224).

         Quanto à distinção entre as polêmicas aberta e velada, Bakhtin (2010, p. 224) afirma que

[…] as diferenças de significação são muito consideráveis. A polêmica aberta está simplesmente orientada para o discurso refutável do outro, que é seu objeto. Já a polêmica velada está orientada para um objeto habitual, nomeando-o, representando-o, enunciando-o, e só indiretamente ataca o discurso do outro, entrando em conflito com ele como que no próprio objeto.

             Ao desenvolver suas reflexões, Bakhtin afirma que a polêmica velada é muito comum tanto nos discursos do cotidiano quanto no discurso literário. Nesse último, exerce grande influência na formação do estilo, o que lhe confere imenso valor no âmbito do literário. É o que nos diz o próprio Bakhtin (2010, p. 225):

             No discurso literário é imenso o valor da polêmica velada. Há propriamente em cada estilo um elemento de polêmica interna, residindo a diferença apenas no seu grau e no seu caráter. Todo discurso literário sente com maior ou menor agudeza o seu ouvinte, leitor, crítico, cujas objeções antecipadas, apreciações e pontos de vista ele reflete. Além disso, o discurso literário sente ao seu lado outro discurso literário, outro estilo. O elemento da chamada reação ao estilo literário antecedente, presente em cada estilo novo, é essa mesma polêmica interna, por assim dizer, dissimulada pela antiestilização do estilo do outro, que se combina com uma paródia patente deste.

         Por isso, compreendemos que, em Diário do hospício, é fundamental analisar as relações dialógicas (aberta e veladamente polêmicas) estabelecidas com outros discursos, enunciados, sujeitos de sua época.

          Tendo apresentado brevemente o tratamento dado por Bakhtin ao discurso bivocal, suas variantes e nuanças, tratemos dos enunciados Diário do hospício e O cemitério dos vivos.

3 Que enunciados são estes: Diário do hospício e O cemitério dos vivos?[8]

O enunciado concreto (e não a abstração linguística) nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Sua forma e significado são determinados basicamente pela forma e caráter desta interação. (VOLOCHÍNOV, 2013a [1926])

            Essa epígrafe muito atesta do nosso objetivo neste tópico, que é, a partir de uma breve reflexão sobre o conceito de enunciado na obra do círculo, proceder à apresentação da narrativa que tomamos como corpus para análise. Mesmo sendo apenas uma apresentação, o que aqui propomos nos auxiliará a: 1) entender Diário do hospício e O cemitério dos vivos como enunciados concretos no processo de construção e delimitação de nosso corpus e 2) atentar para as exigências e demandas que essa articulação teoria/corpus nos impõe.

            Assim como outras noções que orientam os estudos e as pesquisas que se fundamentam na arquitetura filosófica de Bakhtin e do Círculo, as concepções de enunciado e enunciação não aparecem explicitadas numa única obra dos membros do círculo, mas as considerações acerca do enunciado e da enunciação estão espalhadas e podem ser encontradas em várias obras assinadas pelos pensadores russos. Da leitura que temos empreendido das obras do círculo, notamos que as noções de enunciado e enunciação são, geralmente, tratadas juntas ou, quando não, se imbricam implicitamente. Como no pensamento dialógico é difícil desvincular o eu do outro, a identidade da alteridade, o processo de seu produto, o mesmo acontece com o enunciado e a enunciação. Em Marxismo e filosofia da linguagem, assim se pronunciam Volochínov e Bakhtin sobre a enunciação:

Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 101)

              O que foi dito a respeito do enunciado e o conteúdo dessa citação, a nosso ver, provocam um deslocamento na maneira de lidar tanto com Diário do hospício quanto com O cemitério dos vivos. Ao considerar o enunciado e sua enunciação ou a enunciação e seu enunciado, colocamo-nos diante de uma cadeia discursiva onde as palavras circulam, onde elas dialogam, onde sujeitos se posicionam responsivamente, o que nos leva a pensar na complexa realidade sociocultural brasileira de inícios do século XX, o que nos leva a não considerar os dois enunciados/enunciações que ora tomamos para reflexão separadamente de suas situações reais, vivas, de existência. É mais ou menos isso o que está inscrito em A construção da enunciação.               Nesse ensaio, diz-nos Volochínov (2013b [1930], p. 158) que

[…] a comunicação verbal não passa de uma das inumeráveis formas do desenvolvimento – “de formação” – da comunidade social na qual se realiza a interação verbal entre pessoas que vivem uma vida social. Por isso, seria uma tarefa desesperada tentar compreender a construção das enunciações, que formam a comunicação verbal, sem ter presente nenhum de seus vínculos com a efetiva situação social que as provoca.

Assim, chegamos a nossa última conclusão: a essência efetiva da linguagem está representada pelo fato social da interação verbal, que é realizada por uma ou mais enunciações. (destaques do autor)

            É por isso que, ao tratar de Diário do hospício e O cemitério dos vivos, não abandonamos a comunidade social em que ocorrem nem os sujeitos que vivem em sociedade e que partilham enunciados concretos que foram ditos e escritos antes dessa narrativa de Lima Barreto sobre a loucura, a psiquiatria, a literatura e daqueles que foram ditos e escritos depois dela. Estando esses enunciados ou não na mesma esfera de atividade ideológica, ocorre, historicamente, a interação verbal de enunciados e de seus autores, o que, numa complexa malha de reflexos e refrações, vai construindo diálogos, polêmicas, conversas, embates. Nesse sentido, pensar Diário do hospício e O cemitério dos vivos enquanto enunciados é resgatar sua história de constituição e construção numa grande temporalidade, é tentar refazer a cadeia textológica do campo literário na relação com outros autores, outros enunciados e também na sua relação com outros campos, a exemplo do científico. Assim, na nossa investigação, colocamo-nos no evento social da interação verbal e passamos a dialogar com autores e enunciados sem os quais seria extremamente difícil pensar as questões da polêmica numa abordagem dialógica.

            Diário do hospício narra as vivências da segunda internação de Lima Barreto, do dia 25 de dezembro de 1919 a 2 de fevereiro de 1920, no Hospício Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro. As primeiras anotações datam de quatro de janeiro de 1920. Nas edições de 1956, 1993, 2004 e 2010, o diário tem dez capítulos.

O primeiro, cuja inscrição data de 04 de janeiro de 1920, narra a recepção no hospício, o primeiro banho coletivo e nu, fala de suas consultas com os médicos Adauto Botelho, Henrique Roxo e Ayrosa; da visita que recebeu do irmão e do senhor Ventura no dia 28 de dezembro de 1919; também comenta seu encontro com Juliano Moreira, à época, diretor do Hospício Nacional. No segundo capítulo, comenta sua entrada e experiência na seção Calmeil, que ocorreu numa segunda-feira, dia 29 de dezembro de 1919, a falta de livros na biblioteca (para ele, houve um desfalque), sua consulta com Humberto Gottuzo, médico elogiado por ele, e reflete sobre seu vício. No terceiro, reflete sobre as causas que o colocaram no Hospício Nacional, revela a leitura da obra de Henry Maudsley, O crime e a loucura, livro que leu em francês e que o impressionou bastante, fazendo-o elaborar um decálogo para o governo de sua vida, elenca os problemas que acabaram provocando sua internação no dia 25 de dezembro de 1919: confessa que iniciou o consumo de bebida alcoólica por meio da cerveja; depois, pela falta de dinheiro, passa a beber cachaça – “parati” –, a qual ele “bebia desbragadamente” (BARRETO, 2010, p. 61); fala da decepção com a recepção apática de seu primeiro livro, Recordações do escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909; narra o episódio em que cai de tão bêbado que estava, circunstância na qual, estando na companhia de V. (Joaquim Vilarinho)[1] recebeu ajuda de uma terceira pessoa: uma mulher mandou que sua empregada fosse oferecer-lhe um vaso de éter e recomendar ao senhor V. que levasse o escritor para casa com cuidado. Além disso, aborda os hábitos de higiene íntima e pessoal: “Não me preocupava com meu corpo. Deixava crescer o cabelo, a barba, não me banhava a miúdo.” (BARRETO, 2010, p. 63). Ainda neste terceiro capítulo, comenta o estado deplorável em que era encontrado quando acordava depois de ter passado a noite em capinzais e dos roubos que sofria. Revela que faltava à repartição onde trabalhava semanas e meses. Descreve a crise que teve em 1919 e que culminou na sua internação.

         No quarto capítulo, Lima Barreto conta-nos de sua experiência entre os loucos; confessa que leu algumas coisas sobre a loucura e que conversou com estudantes e médicos que se dedicavam ao estudo da alienação mental; narra o caso o louco F. B. e descreve seu comportamento perante os outros lunáticos e os funcionários do hospício (guardas, enfermeiros, médicos); narra o encontro com V. de O., que lhe deixa bastante impressionado, narra o caso do “louco bacharel” e do “louco engenheiro”; fala ainda do louco que jogava bilhar com um médico, de O., que explicava aritmética. No quinto capítulo, dedica-se aos casos dos loucos silenciosos: fala da relação entre loucos e enfermeiros; informa que, entre os enfermeiros, havia estrangeiros, especialmente portugueses e espanhóis; diferencia bons e pacientes enfermeiros dos maus, “que não prestam”, entre esses últimos, especificamente os particulares, levados para dentro do hospício pelos “doentes abastados” (BARRETO, 2010, p. 80); descreve aspectos da vida no hospício, de seu cotidiano, como os namoros entre os enfermeiros e as enfermeiras. Refere-se ao mau tratamento conferido pelos guardas aos loucos; confessa dores e angústias, vontade de ter outra vida, fala das humilhações pelas quais passou no hospício. Neste capítulo, aparecem ainda nomes de personagens fictícios, como Tito Flamínio, e fragmentos de ficcionalização.

            Ainda neste quinto capítulo, o autor relata o suicídio de um doente acontecido no Pavilhão de Observação, que, segundo nota de Massi e Moura (2010, p. 84), “Os jornais noticiaram o suicídio em 17 de janeiro de 1920. Ernani da Costa Couto, 22 anos, havia sido internado na véspera. A mesma ideia sempre rondou Lima Barreto: “Desde menino, eu tenho a mania do suicídio”, anotou em seu Diário íntimo, em 16 de julho de 1908.”

           No capítulo sexto, o autor, já no início, fala da leitura de Plutarco. Depois disso, censura os parentes que o internaram no hospício e a ilegalidade da polícia, que os ajudou. Fala dos casos dos uxoricidas que há no hospício e também dos que aparecem nos jornais. Em seguida, discute, brevemente, se a loucura é contagiosa ou não, volta a falar da presença de loucos assassinos, não necessariamente uxoricidas, no hospício e dos hábitos dos loucos.

         No capítulo sétimo, Lima Barreto fala do dia de São Sebastião, das paisagens que avista a partir do hospício e do tédio que o acompanha nesse momento. Escreve sobre as desventuras da vida, da falta de dinheiro. Nesse dia, o cotidiano do hospício seria diferente, marcado por atividades distintas das dos dias comuns, mas que são interrompidas por um surto de D. E., um dos internados.

      No capítulo oitavo, Lima Barreto fala da biblioteca do hospício e de um desfalque que constata em seu acervo ao compará-lo com o de cinco anos atrás, quando esteve internado pela primeira vez num hospício, de agosto a outubro de 1914. Lembra as experiências de leitura das obras de Júlio Verne, o que lhe remete à infância. Volta a tratar do seu desejo de morte e de sua incapacidade para buscá-la. Revela que deixa de frequentar a biblioteca por causa das provocações dos loucos. Volta a falar da leitura de Plutarco. Refere-se à dificuldade que enfrenta quando sua atividade é a leitura. Descreve seu dormitório e seus colegas de quarto. Faz referência a episódios de conflitos entre os internos. Ainda neste capítulo, reproduz os poucos e curtíssimos diálogos com alguns loucos.

         No nono capítulo, o autor continua descrevendo colegas de dormitório. Compara o hospício com outro estabelecimento de saúde por onde passou e onde também ficou internado. Fala da visita de um fiscal do governo e de seus efeitos no cotidiano e na rotina do hospício. Nesse episódio, os pacientes apresentam queixas e denúncias, insatisfações, fazem cobranças; Lima revisa algumas representações. Mais uma vez, volta ao caso de V. O./V. de O.

          A partir do que expomos, podemos dizer que, ao longo de todo o texto, é descrito e narrado o cotidiano no interior do hospício: as situações de humilhação no banho coletivo; as consultas com os psiquiatras e as impressões sobre cada um deles; reflexões acerca da loucura e da psiquiatria, a convivência diária com os outros internados, com os guardas e enfermeiros; as mudanças de uma seção para outra; a arquitetura do hospício e de seu entorno geográfico; momentos de tédio; afeição a um ou outro doente; momentos de melancolia, tristeza; o encontro com os livros da biblioteca do hospício. Por fim, no décimo capítulo, é apresentada uma série de notas que, segundo os editores (MASSI; MOURA, 2010), foram desenvolvidas tanto em Diário do hospício quanto em O cemitério dos vivos.

            O cemitério dos vivos é um romance inacabado de Lima Barreto, elaborado em 1920 e em 1921, cujos originais, assim como os de Diário do hospício, se encontram na Seção de Manuscritos da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. Em 1921, a Revista Souza Cruz, nº 49, publicou suas páginas iniciais com o título As origens (MASSI; MOURA, 2010, p. 142).

            Junto com Diário do hospício, teve cinco edições. Desde sua primeira publicação em livro, feita pela editora Mérito, em 1953, aos cuidados de Francisco de Assis Barbosa, essa narrativa tem despertado o interesse de pesquisadores, editores, críticos e leitores em geral. De suas edições, temos notícia dessa primeira, de 1953 e de quatro outras edições. A segunda delas ocorreu em 1956, feita pela editora Brasiliense, com prefácio de Eugênio Gomes. Em 1993, veio a público uma organização feita por Maria Lúcia M. de Oliveira, Diva Maria D. Graciosa e Rosa M. de Carvalho Gens para a Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, sob o título de Diário do hospício e O cemitério dos vivos. Uma quarta edição foi publicada em 2004, pela editora Planeta, com prefácio de Fábio Lucas, e organização e notas de Diogo de Hollanda. E uma quinta, e última edição, com organização e notas de Augusto Massi e Murilo Marcondes de Moura, publicada em 2010 pela editora Cosac Naify, também com o título de Diário do hospício e O cemitério dos vivos.

          Como vemos, tratamos de textos com uma história singular. O segundo que apresentamos teve suas primeiras páginas publicadas numa revista em 1921, trecho cujos manuscritos se perderam; não foi publicado inteiramente com seu autor vivo; esse autor não cuidou sequer de uma primeira edição da obra, nem a concluiu; seus manuscritos são de difícil trato, dadas as condições em que foram escritos – quando Lima Barreto ainda estava internado no Hospício Nacional de Alienados. Além disso, passou por cinco edições, todas póstumas e com intervalos de tempo relativamente longos: de 1956 a 1993, são nada mais nada menos que 37 anos. Também a primeira demorou a ser publicada, 31 anos. O que é bastante significativo, se considerarmos que o trabalho de editar um texto também inclui processos de interpretação (e influencia a construção da autoria?).

           Isso nos permite dizer que Diário do hospício e O cemitério dos vivos passaram pelas mãos de leitores-editores os mais diversos, que lhes tiraram elementos ou lhes acrescentaram, o que, do ponto de vista de uma abordagem bakhtiniana, faz toda a diferença no processo de construção de sua autoria. Não tanto pela quantidade de edições, mas, sobretudo, pelo fato de a obra não ter recebido acabamento de Lima Barreto para publicação.

       Outro dado a ser considerado é o fato de O cemitério dos vivos vir, desde 1956[3], antecedido apenas de Diário do hospício, que, segundo a edição de 1993 (organizada para a Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro), seriam “anotações para O cemitério dos vivos”. É tão recorrente, nas várias edições da obra, Diário do hospício anteceder O cemitério dos vivos e ser considerado um “enunciado-rascunho” do segundo, que Alfredo Bosi (2006, p. 322), em sua História concisa da literatura brasileira, chega a afirmar que


A obra, coligida postumamente, apresenta-se dividida em duas partes: a primeira contém o diário do escritor relativo à sua estada no casarão da Praia Vermelha (do Natal de 1919 a 2 de fevereiro de 1920); a segunda, que é propriamente o romance, constitui-se do esboço de uma tragédia doméstica cujos fragmentos alternam com as memórias da vida no hospício.

              Afirmação que torna possível a compreensão de que Diário do hospício e O cemitério dos vivos fariam parte de uma mesma obra ou romance, como A terra, O homem e A luta compõem Os sertões, de Euclides da Cunha (1902). Posicionamento do qual discordamos, embora, por questões de espaço, não discutiremos no âmbito deste artigo.

              O cemitério dos vivos é formado por cinco capítulos, que, mesmo inacabado, por conta da morte de seu autor (lima-autor-pessoa) em novembro de 1922, narra a história de Vicente Mascarenhas a partir do diálogo com o texto de Diário do hospício, insistentemente chamado de “primeira parte” nas edições e pela crítica especializada – a esse respeito ver Lucas (2004) e Bosi (2010). A singularidade a que nos referimos mais acima reside também no fato de O cemitério dos vivos (arte, literatura) ter sido escrito num diálogo estreito com Diário do hospício (vida). Na constituição de nosso corpus, estamos diante, portanto, do encontro entre a vida e a arte, como nos mostram Volochínov e Bakhtin no texto fundante Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica, de 1926.

          Nesse romance inacabado de Lima Barreto, lemos a história de Vicente Mascarenhas, nossa personagem protagonista, que é, também, nosso narrador. Vicente Mascarenhas é um jovem rapaz de mais ou menos 17 anos de idade, canhestro e tímido, que, apesar de ter vivido fora do ambiente doméstico, em internatos, no meio de meninos e rapazes desenvoltos, nunca foi dado à sociabilidade feminina. Inábil para tratar com damas, ainda que tivesse uma irmã, nunca havia namorado. Como não sabia lidar com mulheres e moças, das situações com elas, saía aborrecido. Mascarenhas é também um leitor: lia José de Alencar, Macedo, Manuel de Almeida, Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Castro Alves, Gonzaga, Bilac, Júlio Verne, Miguel de Cervantes. Também tem o hábito de pensar depois que age, de julgar a si mesmo, é dado a autoavaliações morais. Autodenomina-se ainda como positivista (BARRETO, 2010).

         Ao chegar ao Rio de Janeiro, com mais ou menos 17 anos, vai morar, por indicação de um amigo, na pensão de dona Clementina Dias, viúva, mãe de três filhos, dois rapazes e uma moça. Esta, um pouco mais jovem que Mascarenhas. É com ela que ele se casará, a pedido da viúva, e terá um filho.

         A narrativa começa com dona Efigênia no leito de morte pedindo a Vicente que desenvolva “aquela história da rapariga, num livro.”; um conto que ele começara a fazer antes de casar-se com ela. Já a partir do segundo capítulo, e nos seguintes, nossa personagem narra seu ingresso no hospício e as experiências vividas na sua passagem por ele: conversas com pacientes dos mais diversos tipos; consultas com médicos (psiquiatras, alienistas); sua relação com enfermeiros, guardas, funcionários em geral; suas impressões a respeito da arquitetura do hospício e de sua história, dos loucos, dos psiquiatras e da loucura.

4 Na berlinda, literatura e ciência

            Não só em Diário do hospício e O cemitério dos vivos há indícios das polêmicas (Lima x literatura de prestígio, Lima x ciência psiquiátrica), mas em outros momentos de sua produção. Em outro trabalho, analisamos, a partir da polêmica com a ciência, o processo de constituição do ethos discursivo em As teorias do doutor Caruru, de Lima Barreto[2]. Nesse artigo, compreendemos os mecanismos de funcionamento do discurso literário, refletimos sobre o discurso literário como discurso constituinte e analisamos as estratégias discursivas de deslegitimação do discurso científico. O doutor Caruru da Fonseca é ridicularizado enquanto metonímia da ciência do início ao fim da crônica.

            Essa crítica segue acompanhada de outras: como a crítica a um certo projeto de nação, ao modelo de língua ou de uso da língua e à chamada “cultura do doutor”. Ao analisar a crônica de Lima Barreto A Universidade, Matias (2007, p. 58) escreve que, nessa crônica,


O cronista tece ainda considerações a respeito do que denomina de “superstição doutoral”, que implica a reserva das oportunidades para dirigentes em empresas, como Lloyd, os Correios e Telégrafos e da Central do Brasil (sic), destinadas aos engenheiros, fixando uma estranha compulsão pela “doutomania”. (BARRETO, 1956a, p. 120). Já àquela época, o cronista identificava que a universidade estava mais para funcionar como um trampolim dos doutores para alcançar os privilégios dos cargos públicos ou privados, do que para compor um quadro de ensino superior adequado à realidade brasileira.

A maneira pela qual esta “doutomania” se revela freqüentemente é o vezo pela oratória dos doutores, que se apropriam das mais fugazes oportunidades para deitarem falação sobre os mais variados assuntos.

             Entretanto, se, em As teorias do doutor Caruru, Lima posiciona-se contrariamente à ciência que se praticava na época e também discute, mesmo que tangencialmente, a língua e seu uso, como, aliás, demonstramos no artigo a que nos referimos, em Os samoiedas, o alvo é a literatura de prestígio, com quem o embate é diretamente travado. É a isto que se presta este tópico: a partir da retomada da análise da constituição do ethos discursivo do doutor Caruru da Fonseca e de uma breve análise de Os samoiedas, texto retirado do livro de sátiras Os bruzundangas (2000 [1923]), de Lima Barreto, apresentar o posicionamento que esse autor assume no campo literário das duas primeiras décadas do século XX, momento de sua produção. Essa retomada e essa breve análise nos auxiliarão na análise da bivocalidade polêmica em O cemitério dos vivos, a partir de dois fragmentos que consideramos representativos da relação estabelecida/construída com o discurso outro, o da ciência e o da literatura de prestígio.

            Antes, porém, temos de deixar claro para nosso leitor que as polêmicas que ora analisamos não são novidade para aqueles que se debruçam sobre a obra de Lima Barreto. Como exemplos, podemos citar as reflexões de Mauro Silva (1999) em Confrontos linguísticos no Pré-Modernismo brasileiro: Lima Barreto versus Coelho Neto e Lima Barreto e Coelho Neto: divergências literárias na literatura brasileira da passagem do século; Lenivaldo Gomes de Almeida (2006) em Um autor em procura de uma alma: a crise da representação e a dimensão trágica em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá; José Luiz Matias (2007) em Vida urbana, Marginália, Feiras e mafuás: a modernidade urbana nas crônicas de Lima Barreto; Fabiana Delana Viegas Galindo (2007) em A polifonia nas crônicas de Lima Barreto; Regina Célia Ramalho (2007) em A língua e a história no conto literário de Lima Barreto; André Luiz dos Santos (2007) em Caminhos de alguns ficcionista brasileiros após as Impressões de leitura de Lima Barreto; Marta Rodrigues (2007) em Entre a crítica e a paixão: os discursos do narrador e do protagonista em Triste fim de Policarpo Quaresma; Carlos José Bertolazzi (2008) em Lima Barreto: representações, diálogos e trajetórias literário-culturais; Zélia Ramona Nolasco dos Santos Freire (2009) em A concepção de arte em Lima Barreto e Leon Tolstói: divergências e convergências; Deysiane Farias Pontes (2009) em A tradição intelectual do romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de Lima Barreto; André Luiz Dias Lima (2009) em Lima Barreto e Dosloiévski: vozes dissonantes; Alice Atsuko Matsuda (2009) em Presença do pensamento utópico nos discursos de Lima Barreto; Paulo Alves (2009) em A farpa e a lira: uma análise socioliterária a partir de Cruz e Sousa e Lima Barreto; Jackson Diniz (2010) em Identidade negra e modernidade na obra de Lima Barreto.

            Todos esses estudos fazem referência a polêmicas travadas entre Lima Barreto e os escritores realistas, naturalistas, parnasianos, simbolistas, principalmente àquela que, talvez, tenha sido a mais intensa, àquela travada com Coelho Neto, autor de Inverno em flor (1897). Além desses estudos indicados no parágrafo anterior, também Alfredo Bosi (2006 [1970]), em História concisa da literatura brasileira, alude à polêmica entre Lima Barreto e Coelho Neto.

             Em várias passagens de sua obra, Lima Barreto se refere ao estado da literatura, a Coelho Neto, conforme os fragmentos que seguem:

Os literatos, os grandes, sempre souberam morrer de fome, mas não rebaixaram a sua arte para simples prazer dos ricos. Os que sabiam alguma cousa de letras e tal faziam, eram os histriões; e estes nunca se sentaram nas sociedades sábias… (BARRETO, 1956, p. 191)

O senhor Coelho Neto é o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual. […]

Os estudos do senhor Coelho Neto sempre foram insuficientes; ele não viu que um literato, um romancista não pode ficar adstrito a esse aspecto, aparente de sua arte; ele nunca teve a intuição de que era preciso ir mais além das antíteses e das comparações brilhantes. (BARRETO, 1956b, p. 189)

Em um século de crítica social, de renovação latente das bases das nossas instituições; em um século que levou a sua análise até os fundamentos da geometria, que viu pouco a pouco desmontar-se o mecanismo do Estado, da Legislação, da Pátria, para chegar aos seus elementos primordiais de superstições grosseiras e coações sem justificações nos dias de hoje; em um século deste, o Senhor Coelho Neto ficou sendo unicamente um plástico, um contemplativo, magnetizado pelo Flaubert da Mme Bovary, com suas chinesices de estilo, querendo como os Goncourts, pintar com a palavra escrita, e sempre fascinado por uma Grécia que talvez não seja a que existiu mas, mesmo que fosse, só nos deve interessar arqueologicamente. (BARRETO, 1956a, p. 75)

Em anos como os que estão correndo, de uma literatura militante, cheia de preocupações políticas, morais e sociais, a literatura do Senhor Coelho Neto ficou sendo puramente contemplativa, estilizante, sem cogitações outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro. (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 76).

A missão da literatura é fazer comunicar umas almas com as outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando desse modo a solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para conquista do planeta e se entenderem melhor, no único intuito de sua felicidade. (Histrião ou literato? 15/02/1918. V. I. p. 319)

O deputado [Coelho Neto] ficou sendo o romancista que só se preocupou com o estilo, com o vocabulário, com a paisagem, mas que não fez do seu instrumento artístico um veículo de difusão das grandes idéias do tempo, em quem não repercutiram as ânsias de infinita justiça dos seus dias; em quem não encontrou eco nem revolta o clamor das vítimas da nossa brutalidade burguesa, feita de avidez de ganho, com a mais sinistra amoralidade para também edificar, por sua vez, uma utopia ou ajudar a solapar a construção social que já encontrou balançando. (BARRETO, 1961e, p. 76).

            Nesses fragmentos, temos indícios da relação de alteridade entre Lima Barreto e Coelho Neto, entre dois posicionamentos no interior do campo literário. Também podemos perceber, nesses trechos, por meio da sugestibilidade das passagens, duas polêmicas: uma, velada; e outra, aberta. Assim, compreendemos que, quando Lima trata explicitamente da literatura coelhonetana, trata-a polemicamente, tensamente, o que nos leva a pensar que estamos diante de uma polêmica aberta. Além disso, as formações verbo-axiológicas de Lima, que marcam um posicionamento na dinâmica do campo literário, alude, polemicamente, a outras formações verbo-axiológicas. É nesse diálogo com Coelho Neto que não está marcado e delimitado apenas no conteúdo do que é dito, mas também na forma como o que é dito é dito, no tom, no estilo construído nas relações estabelecidas com o outro – outro discurso, outro sujeito –, que as polêmicas vão sendo construídas na esfera literária. Diante disso, podemos ouvir Bakhtin (2010, p. 287) quando, ao comentar as relações dialógicas na obra de Dostoiévski, afirma que “uma ideia é evidente, determina o conteúdo do discurso, a outra é velada, contudo, determina a construção do discurso lançando sobre ela a sua sombra.”

            É com base nesse pensamento bakhtiniano que entendemos o discurso limaberretiano, nesses fragmentos apresentados, como um discurso duplamente polêmico, sua contestação não se dá apenas nos enunciados enquanto afirmações, conteúdos, críticas endereçadas diretamente a Coelho Neto e, por tabela, aos escritores parnasianos e ao parnasianismo enquanto movimento estético-ideológico, mas se dá também na sua construção, no seu estilo, nas suas formações verbo-axiológicas. Aqui, é importante ressaltarmos que a construção desse posicionamento limabarretiano se dá na dialogia que há entre a construção, o estilo e o próprio posicionamento, sempre responsivo.

            Algo semelhante é encontrado em Os bruzundangas. Logo no início do livro, na primeira sátira, lemos:

Queria evitar, mas me vejo obrigado a falar na literatura da Bruzundanga. É um capítulo dos mais delicados, para tratar do qual não me sinto completamente habilitado.

Dissertar sobre uma literatura estrangeira supõe, entre muitas, o conhecimento de duas cousas primordiais: idéias gerais sobre literatura e compreensão fácil do idioma desse povo estrangeiro. Eu cheguei a entender perfeitamente a língua da Bruzundanga, isto é, a língua falada pela gente instruída e a escrita por muitos escritores que julguei excelentes; mas aquela em que escreviam os literatos importantes, solenes, respeitados, nunca consegui entender, porque redigem eles as suas obras, ou antes, os seus livros, em outra muito diferente da usual, outra essa que consideram como sendo a verdadeira, a lídima, justificando isso por ter feição antiga de dous séculos ou três.

Quanto mais incompreensível é ela, mais admirado é o escritor que a escreve, por todos que não lhe entenderam o escrito. (…)

Os literatos, propriamente, aqueles de bons vestuários e ademanes de encomenda, não lhes dão importância, embora de todo não desprezem a literatura oral. Ao contrário: todos eles quase não têm propriamente obras escritas; a bagagem deles consta de conferências, poesias recitadas nas salas, máximas pronunciadas na intimidade de amigos, discursos em batizados ou casamentos, em banquetes de figurões ou em cerimônias escolares, cifrando-se, as mais das vezes, a sua obra escrita em uma plaquette de fantasias de menino, coletâneas de ligeiros artigos de jornal ou num maçudo compêndio de aula, vendidos, na nossa moeda, à razão de quinze ou vinte mil-réis o volume.

Estes tais são até os escritores mais estimados e representativos, sobretudo quando empregam palavras obsoletas e são médicos com larga freguesia.

São eles lá, na Bruzundanga, conhecidos por “expoentes” e não há moça rica que não queira casar com eles. Fazem-no depressa porque vivem pouco e menos que os seus livros afortunados. Há outros aspectos. Vamos ver um peculiar.

O que caracteriza a literatura daquele país, é uma curiosa escola literária lá conhecida por “Escola Samoieda”.

Não que todo o escritor bruzundanguense pertença a semelhante rito literário; os mais pretensiosos, porém, e os que se têm na conta de sacerdotes da Arte, se dizem graduados, diplomados nela. (BARRETO, 2000 [1923], p. 8-12)

          Embora os nomes de escritores e poetas não estejam escritos, materialmente enunciados, no tecido dessa crônica, quando a lemos, atualizamos sentidos que aludem, de alguma forma, ao debate no campo da atividade literária. É dessa sugestão advinda da alusão provocada pela atualização dos sentidos, processo inerente à vida do enunciado concreto, que, de maneira refletida e refratada, podemos perceber, ainda por meio do diálogo com o que foi dito antes, mais uma vez as “alfinetadas” ao posicionamento de uma literatura tradicional, conservadora, purista, “douta”, sobretudo por meio das formações verbo-axiológicas construídas tanto nas crônicas de Lima Barreto quanto em Os samoiedas.

5 A bivocalidade polêmica em Diário do hospício

            Como essa dupla polêmica aparece em Diário do hospício, de Lima Barreto? Para respondermos a essa pergunta e, por conseguinte, alcançarmos o objetivo que propomos neste artigo, selecionamos dois fragmentos de Diário do hospício. A seleção a que procedemos se justifica no fato de tais fragmentos nos darem as condições necessárias para analisarmos a polêmica com a literatura de prestígio da época e com a ciência psiquiátrica. Senão, vejamos:

Sentei-me ao lado de um preto moço, tipo completo do espécime mais humilde da nossa sociedade. Vestia umas calças que me ficavam pelas canelas, uma camisa cujas mangas me ficavam por dois terços do antebraço e calçava uns chinelos muito sujos, que tinha descoberto no porão da varanda.

Tinha que ser examinado pelo Henrique Roxo. Há quatro anos, nós nos conhecemos. É bem curioso esse Roxo. Ele me parece inteligente, estudioso, honesto; mas não sei por que não simpatizo com ele. Ele me parece desses médicos brasileiros imbuídos de um ar de certeza de sua arte, desdenhando inteiramente toda a outra atividade intelectual que não a sua e pouco capaz de examinar o fato por si. Acho-o muito livresco e pouco interessado em descobrir, em levantar um pouco o véu do mistério — que mistério! — que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa, dos Estados Unidos, talvez; mas não lê a natureza.

Não tenho por ele antipatia; mas nada me atrai a ele.

Perguntou-me por meu pai e eu lhe dei informações. Depois, disse-lhe que tinha sido posto ali por meu irmão, que tinha fé na onipotência da ciência e a crendice do hospício. Creio que ele não gostou. (BARRETO, 2010, p. 46-47)

Esperei o médico. Era um doutor Airosa, creio eu ser esse o nome, interrogou-me, respondi-lhe com toda a verdade, e ele não me pareceu mau rapaz, mas sorriu enigmaticamente, ou, como dizendo: “você fica mesmo aí” ou querendo exprimir que os meus méritos literários nada valiam, naturalmente à vista das burrices do Aluísio. Fosse uma coisa, fosse outra, fossem ambas conjuntamente, não me agastei. Ele era muito moço; na sua idade, no caso dele, eu talvez pensasse da mesma forma. (BARRETO, 2010, p. 48-49)

Outra coisa que me fez arrepiar de medo na Seção Pinel foi o alienista. Se entre nós, no Rio, houvesse uma universidade, eu poderia dizer que ele havia sido meu colega, porquanto, quando ele freqüentava a Escola de Medicina, eu passeava pelos corredores da Escola Politécnica.

Nunca travamos relações, mas nós nos conhecíamos. Ele, porém, não se deu a conhecer e eu, no estado de humilhação em que estava, não devia ser o primeiro a me dar a conhecer.

Não lhe tenho nenhuma antipatia, mas julgo-o mais nevrosado e avoado do que eu. É capaz de ler qualquer novidade de cirurgia aplicada à psiquiatria em uma revista norueguesa e aplicar, sem nenhuma reflexão preliminar, num doente qualquer. É muito amante de novidades, do vient de paraitre, das últimas criações científicas ou que outro nome tenham. (BARRETO, 2010, p. 55-56)

            Nesses excertos, vislumbramos as críticas ao doutor, ao médico. Se, em outros discursos, o médico e seu discurso seriam ovacionados, bajulados ou algo do gênero, no discurso limabarretiano, o médico e seu discurso aparecem, no jogo das vozes sociais, criticado. Se, na época, havia discursos defensores da “cultura do doutor”, que conferia aos magistrados, engenheiros e médicos grande prestígio social, em Diário do hospício, não é isso o que acontece. Lima, como fizera em Os bruzundangas, subverte a relação com os discursos de prestígio do cronótopo que integra e constitui. Ao fazer isso, na relação com outros discursos, outras esferas, ele reflete e refrata posicionamentos assumidos por pacientes diante de médicos, de loucos diante de psiquiatras. É nesse momento também que, estando o discurso do autor orientado para o objeto – a relação eu-outro, paciente-médico –, como qualquer outro discurso, “qualquer afirmação sobre o objeto é construída de maneira que, além de resguardar seu próprio sentido, ela possa atacar polemicamente o discurso do outro sobre o mesmo assunto e a afirmação do outro sobre o mesmo objeto.” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Por isso, precisamos retomar o discurso do outro sobre o mesmo assunto e sobre o mesmo objeto. É Luzia de Maria (2005), em Sortilégios do avesso: razão e loucura na literatura brasileira, quem afirma que

[…] pode o texto de Coelho Neto ser lido como porta-voz do discurso científico. A psiquiatria nascente no Brasil do final do século [XIX], o saber da ciência exigindo seu espaço entre os assuntos em voga e a figura do médico assumindo o papel de controlador da saúde social, deram (sic) a Coelho Netto (sic) subsídios para a elaboração do romance Inverno em flor. Aqui, a literatura afirma o saber médico. (MARIA, 2005, p. 149)

            O que estamos dizendo, em outras palavras, é que, embora trate do discurso médico, da psiquiatria das duas primeiras décadas do século XX, o discurso de Lima em Diário do hospício “se choca no próprio objeto com o discurso do outro” (BAKHTIN, 2010, p. 224). Podemos fazer um pequeno deslocamento e pensar que no próprio objeto o discurso do autor se choca com os discursos, com as vozes sociais de vários outros. No nosso caso específico, podemos constatar que entre esses vários outros discursos com os quais se choca o discurso de Lima está a voz de Coelho Neto em Inverno em flor, refletido/refratado pela leitura de Maria (2005). Mais do que isso: ao considerar o que Lima afirma sobre a literatura de Coelho Neto e sobre seu posicionamento no campo literário, podemos dizer que seu discurso se choca com o dele (Coelho Neto) ao elaborar narrativas que tratam de temas como a loucura, a psiquiatria nascente no início do século XX, aqui no Brasil, e da relação paciente-médico.

            Não por coincidência, Morson e Emerson (2008, p. 153), a partir da leitura que fazem da obra de Bakhtin e do Círculo, afirmam que

Todas as vezes que falamos, respondemos a algo já falado antes e tomamos uma posição com respeito a enunciados anteriores sobre o tópico. O modo como percebemos esses enunciados anteriores – como hostis ou simpáticos, peremptórios ou frágeis, social ou temporalmente fechados ou distantes – molda o conteúdo e o estilo do que dizemos. Percebemos esses enunciados alheios no próprio objeto. É como se o objeto fosse revestido por uma espécie de cola que lhe preserva as caracterizações anteriores.

            São esses elementos e essas relações dialógicas que nos dão condições concretas de analisar a bivocalidade polêmica em Diário do hospício. Então, onde estaria a polêmica velada entre Lima Barreto e os outros literatos? Retomemos, rapidamente, o que dissemos antes sobre essa modalidade de polêmica, na qual “[…] a palavra do outro permanece fora dos limites do discurso do autor, mas este discurso a leva em conta e a ela se refere […]” (BAKHTIN, 2010, p. 223). Quando Lima Barreto escreve suas obras literárias, a sua textualidade, o seu enunciado, não é um enunciado feito conforme os padrões estéticos dos parnasianos, simbolistas ou neoparnasianos, neossimbolistas. Ao construir seus enunciados mais próximos à linguagem comum dos leitores comuns, ele se distancia das construções verbo-axiológicas dos escritores hegemônicos de sua época. Aí já há a polêmica velada, porque, se ele não polemizasse, talvez os enunciados fossem construídos conforme os padrões parnasianos, simbolistas, do academismo tradicional cujos princípios ideológicos orientavam o fazer da literatura de prestígio do momento. Observemos que a palavra do outro não está explícita no enunciado limabarretiano, mas ele escreve em resposta a esse outro, polemizando com ele, com esse outro.

            Embora tenha influenciado a enunciação, o enunciado do autor Lima Barreto, a palavra do outro não está, explicitamente, “lá”, “[…] aqui a palavra do outro não se reproduz sem nova interpretação, mas age, influi e determina a palavra do autor, permanecendo ela mesma fora desta […]” (BAKHTIN, 2010, 224); mas, de alguma forma, Lima responde. Isso seria uma espécie de réplica dialógica, em que “[…] o interlocutor, ao orientar seu discurso para o objeto de sentido, reage ao discurso do outro, reelaborando-o […]”. (BAKHTIN, 2010, p. 225), o que podemos perceber tanto em Os bruzundangas quanto em Diário do hospício. Isso seria também uma espécie de refração, aí há uma refração discursiva. Assim, “[…] quando a refração discursiva não ocorre por meio desse objeto […]”, isto é, quando a refração discursiva acontece sem esse caráter velado, quando os elementos de um outro, de um discurso outro, estão explícitos, temos a bivocalidade polêmica, que “[…] se constitui pela tomada da palavra do outro como base de contestação.” (VELOSO, 2011, p. 46), o que configura o que estamos entendendo por polêmica aberta. Na polêmica aberta, os “[…] contornos linguísticos do discurso refutado emergem de modo evidente na fala do autor, por meio, por exemplo, do discurso citado indireto, nomeação, uso de advérbios de negação, conjunções adversativas […]”. (VELOSO, 2011, p. 47). Então, se, na polêmica velada, elementos enunciativos, linguísticos, do discurso do outro, isto é, as formações verbo-axiológicas do discurso do outro não estão presentes, mas a maneira de enunciar é uma resposta à maneira do outro enunciar, agora, com a presença dos elementos outros, isto é, do outro, elementos linguístico-ideológicos, temos a conformação de uma polêmica aberta.

          Convém lembrarmos que, no pensamento do Círculo, o signo é sempre ideológico, é a arena da luta ideológica, tem duas propriedades, as de refletir e refratar a realidade. Na refração do real, está um aspecto criativo, é aí que a linguagem consegue (re)criar essa realidade de alguma forma. Desse conceito de refração do signo, partimos para a derivação do conceito de refração discursiva, que acontece quando o discurso sofre alterações de acordo com a esfera de circulação, gêneros discursivos, interlocutores etc. Ao mesmo tempo, os reflexos estão no domínio das relações dialógicas e da palavra bivocal. Assim, Lima Barreto como autor dialoga com outros autores literários de sua época e com o discurso da ciência, com os autores da ciência. E aqui ciência e literatura constituem esferas da atividade humana. Esse diálogo, no entanto, não é, necessariamente, consensual; às vezes, como nesse caso, é a dissensão, a discordância, a polêmica que ocorrem. Não consideramos, desse modo, apenas a potencialidade semântica da língua, mas que a construção do sentido se dá, de maneira dialógica, entre sujeitos situados sócio-historicamente.

        Por isso, não consideramos apenas os valores linguísticos das palavras e dos enunciados. O discurso bivocal acontece quando, de alguma forma, os discursos se tangenciam, mas,“[…] se ambos os discursos não se tangenciarem em uma relação semântica que seja consonante ou dissonante, esse discurso não será bivocal, mas apenas objetivado, como nos diálogos dramáticos.” (VELOSO, 2011, p. 46). Nesse sentido, pautando-nos em Bakhtin (2010), podemos dizer que os discursos bivocais são aqueles que se tangenciam numa relação semântica de concordância ou de discordância. No nosso caso, essas relações nos põem diante das polêmicas. Isso não significa que a concordância estaria, por exemplo, para a polêmica velada e que a discordância estaria para a polêmica aberta. Não; há um tangenciamento; nesse tangenciamento, vemos a polêmica emergindo, e, na sua emergência, ela pode ser aberta ou velada. Então, na polêmica velada, “a palavra do outro permanece fora dos limites do discurso do autor, mas este discurso a leva em conta e a ela se refere” (BAKHTIN, 2010, p. 223). É o que vemos no fragmento de Os bruzundangas, que citamos no item 4 para constatarmos como o autor constrói a relação com a esfera literária e, por conseguinte, com seus discursos hegemônicos. A literatura da época são as literaturas parnasiana e simbolista ou ainda neoparnasiana e neossimbolista. Escritores como Rui Barbosa, Olavo Bilac e Coelho Neto assumiam lugares de destaque no âmbito da literatura, exercendo grande influência, tanto ideológica quanto literária. Entretanto, sua atividade ideológica é contestada por Lima em seus textos, o que lhe rende as polêmicas que integrou e que construiu.

6 (In)Conclusão

        Assim, pautando-nos em Bakhtin (2010), podemos dizer que os discursos bivocais são aqueles que se tangenciam numa relação semântica de concordância ou de discordância. Dessa forma, em Diário do hospício, vislumbramos esse tangenciamento discursivo entre as vozes da literatura e da ciência, quando, em seu enunciado, o autor (Lima-autor-criador) reproduz a palavra de seu outro (médico/ciência) por meio do discurso citado indireto, da nomeação, isto é, quando a palavra do outro é tomada explicitamente como uma espécie de apoio para a contestação a ser construída pelo autor. Por outro lado, no âmbito da esfera da atividade literária, essa mesma escrita se apresenta como ato responsivo ativo à(s) fala(s) de outro(s): outros sujeitos, outros autores, escritores; aqui, fazemos referência ao fato de a escrita de Lima considerar a palavra do outro que, mesmo permanecendo fora dos limites de seu discurso, influencia, interfere na sua produção/constituição. Discurso esse que, polêmica e veladamente ao outro aludindo, adota um estilo peculiar que, por isso mesmo, contesta o estilo do outro.

         Os fragmentos de Diário do hospício, objeto de nossas reflexões, bastam para percebermos que Lima-autor-criador estabelece uma polêmica explícita, aberta, com o discurso da medicina, especificamente, com o da psiquiatria. Quer dizer, constantemente, questiona o discurso médico: “Que médico é esse, que lê bastante, mas não consegue entender a alma humana? Que médico é esse, que parece mais acuado do que eu?” Então, ao mesmo tempo em que Diário do hospício é escrito numa linguagem mais próxima à linguagem comum das gentes da época, são enunciados que contestam a postura médica, psiquiátrica dentro do hospício. A partir disso, podemos dizer que, no mesmo texto, no mesmo enunciado, temos uma dupla orientação da palavra, uma polêmica velada em relação à escrita acadêmica, convencional, parnasiana, simbolista; quer dizer, ele se posiciona do lado oposto dos parnasianos, academicistas, conservadores, pelo tipo (estilo) de enunciado que ele escreve, e ele se posiciona, abertamente, do lado oposto da psiquiatria da época, questionando: “que psiquiatria é essa?”

Referências

ALMEIDA, L. G. Um autor em procura de uma alma: a crise da representação e a dimensão trágica em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá. 2006. 134 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Letras. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

ALVES, P. A farpa e a lira: uma análise socioliterária a partir de Cruz e Sousa e Lima Barreto. 2009. 214 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – CAC. Letras. Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009.

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

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[1] Professor de Língua Portuguesa do IF Baiano, Campus Senhor do Bonfim, e aluno do doutorado em Linguística e Língua Portuguesa na Unesp, campus de Araraquara, onde desenvolve pesquisa sob a orientação da professora Luciane de Paula.


[2] Um esquema inicial e bastante preliminar deste artigo foi apresentado na comunicação A bivocalidade polêmica em O cemitério dos vivos, de Lima Barreto, no XVIII Congresso Internacional da ABRALIN, em Natal, Rio Grande do Norte, em janeiro de 2013. Uma segunda comunicação de mesmo título, mas com o acréscimo de outras reflexões, leituras e discussões, foi apresentada no IV Encontro em Análise do Discurso, em Araraquara, São Paulo, em agosto de 2013.

[3] Uma primeira versão deste artigo foi desenvolvida como requisito de avaliação na disciplina Análise do discurso e violência: múltiplos olhares, ministrada pela professora Marina Célia Mendonça no Programa de Pós-Graduação em Linguística e Língua Portuguesa da Unesp, campus de Araraquara.

[4] O que recebe, neste artigo, o status de “introdução” foi submetido, numa versão ampliada, como resumo para inscrição no IV Encontro em Análise do Discurso. Convém deixar claro, no entanto, que seu conteúdo está de acordo com nossos propósitos para este artigo.

[5] Parte deste tópico está publicada em Melo (2014).

[6] Em Problemas da poética de Dostoiévski, os títulos dos capítulos são, respectivamente, do primeiro ao quinto: O romance polifônico de Dostoiévski e seu enfoque na crítica literária; A personagem e seu enfoque pelo autor na obra de Dostoiévski; A ideia em Dostoiévski; Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski; O discurso em Dostoiévski. (BAKHTIN, 2010)

[7] Com isso não estamos defendendo que Coelho Neto seja parnasiano, mas que o discurso parnasiano, independente de Coelho Neto sê-lo ou não, estava num outro lugar da esfera de atividade literária que não era, definitivamente, o de Lima Barreto, mas que se relaciona com o discurso de Lima, constituindo-o pela alteridade e também nela se constituindo.

[8] Uma primeira versão, reduzida e ainda imatura, deste item compõe o artigo A constituição do Autor-criador em O cemitério dos vivos, de Lima Barreto: reflexões iniciais, que foi publicado nos anais do II Encontro de Estudos Bakhtinianos, realizado na UFES, no período de 12 a 14 de novembro de 2013.

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